Bens culturais, Função Social da Propriedade e Instrumentos Jurídicos para a sua Preservação / Cultural goods, Social Function of Property and Legal instruments for its preservation

AutorHélio Rodrigues Figueiredo Junior
CargoMestrando em Direito da Cidade na UERJ. Advogado do Senado Federal. Ex-Procurador na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ.
Páginas28-76
Revista de Direito da Cidade vol.05, nº 02. ISSN 2317-7721
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Revista de Direito da Cidade, vol.05, nº02. ISSN 2317-7721 p. 28-76 28
Bens culturais, Função Social da Propriedade e Instrumentos Jurídicos para a
sua Preservação.
Hélio Rodrigues Figueiredo Junior
*
Resumo: O trabalho foca a preservação de imóveis particulares portadores de valor histórico-
cultural como imposição constitucional, que decorre da função social integrante e
conformadora do conteúdo do direito de propriedade privada. O patrimônio cultural
imobiliário constitui categoria concreta e específica de bem submetido a um estatuto jurídico
próprio, segundo uma doutrina que reconhece a multiplicidade dos estatutos dominiais em
lugar da propriedade como criação abstrata e uniforme da lei. A característica de patrimônio
cultural é inerente a determinados bens e independe de qualquer manifestação dos agentes
públicos. O reconhecimento do valor cultural de um bem pelo Poder Público é ato de mera
declaração, mediante operação direta de concretização de conceitos jurídicos indeterminados
que se encontram delineados no artigo 216 da Constituição Federal. A omissão do Poder
Público na preservação dos bens e dos valores culturais da comunidade não configura
exercício de poder discricionário e pode ser suprida mediante atuação do Poder Judiciário. A
proteção dos valores culturais se impõe como direito difuso da comunidade, salvo hipóteses
de colisão com outros interesses também de estatura constitucional. Neste contexto se inserem
os instrumentos jurídicos previstos na Constituição Federal para a preservação do patrimônio
cultural brasileiro.
Palavras-chave: Patrimônio cultural brasileiro e função social da propriedade. Teoria da
multiplicidade dos estatutos dominiais. Instrumentos jurídico-constitucionais para promoção e
proteção.
Abstract: The work focuses on the preservation of private property holders of historical and
cultural value as constitutional requirement , which stems from the integral and conformadora
social function of the content of the right to private property . The immovable cultural
heritage is concrete and specific category of assets subject to a special legal status , according
to a doctrine that recognizes the multiplicity of dominial statutes in place of property as an
abstract and uniform creation of the law . The characteristic of cultural heritage is inherent to
certain goods and is independent of any manifestation of public officials . The recognition of
the cultural value of an act by the government is a mere declaration by direct operation of
embodiment of indeterminate legal concepts that are outlined in Article 216 of the Federal
Constitution . The omission of the Government in the preservation of property and cultural
values of the community does not constitute the exercise of discretion and can be remedied by
action of the Judiciary . The protection of cultural values is required as diffuse right of the
community , except chances of collision with other interests also constitutional stature. In this
context fall within the legal instruments provided in the Federal Constitution to preserve the
cultural heritage of Brazil.
* Mestrando em Direito da Cidade na UERJ. Advogado do Senado Federal. Ex-Procurador na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro-UFRRJ.
Revista de Direito da Cidade vol.05, nº 02. ISSN 2317-7721
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Revista de Direito da Cidade, vol.05, nº02. ISSN 2317-7721 p. 28-76 29
Keywords: Brazilian cultural heritage and social function of property. Theory of multiplicity
of dominial statutes. Legal and constitutional instruments for the promotion and protection.
INTRODUÇÃO
O texto traz algumas reflexões a respeito do tratamento a ser dado a imóveis de
propriedade particular, que sejam portadores das características de patrimônio histórico-
cultural
1 e sobre os instrumentos jurídicos estabelecidos na Constituição para a promoção e a
proteção dos bens culturais.
A complexidade do mundo contemporâneo trouxe a necessidade do desenvolvimento
de uma doutrina da multiplicidade dos estatutos dominiais, mediante a qual o conteúdo dos
direitos da propriedade privada passou a ser definido segundo as situações concretas dos
diversos bens, em lugar da propriedade como uma criação abstrata e uniforme da lei.
A elaboração do estudo teve em vista uma situação bastante concreta: imóveis de
propriedade particular e com valor histórico-cultural, ou seja, imóveis possuidores de valores
simbólicos decorrentes de sua antiguidade, que desapareceram ou se encontram em risco, por
conta da inércia dos poderes públicos e de ações ou de omissões de proprietários não
enquadrados como pessoas economicamente carentes2.
Acredita-se que muitas das observações possam ser estendidas aos demais bens
culturais materiais, que não se enquadrem na categoria limitada de patrimônio imobiliário
histórico-cultural (vislumbra-se aqui, por exemplo, a hipótese de um imóvel projetado por
arquiteto renomado e que, construído recentemente, passa a integrar a paisagem urbana como
patrimônio cultural, sem a característica da antiguidade3).
Como uma observação preliminar, traz-se ainda a advertência sobre eventuais
distorções do entendimento de que a extensão excessiva do enquadramento ou de limitações
ao uso dos bens culturais poderia resultar na sua banalização, com efeitos contrários e
prejudiciais à adequada proteção do patrimônio cultural4. Este argumento, sistematicamente
apresentado à sociedade sob a fórmula genérica de que “não podemos conservar tudo”, na
realidade, pode se transformar em um “pretexto para demolir tudo”5.
Revista de Direito da Cidade vol.05, nº 02. ISSN 2317-7721
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Revista de Direito da Cidade, vol.05, nº02. ISSN 2317-7721 p. 28-76 30
1. O VALOR CULTURAL OBJETO DA PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES - BENS CULTURAIS MATERIAIS
E IMATERIAIS.
É evidente que o ordenamento jurídico não pretende proteger toda manifestação
cultural tomada em sentido antropológico amplo e que englobaria toda e qualquer atividade
ou obra humana.
Não se ignora também que o enquadramento de determinado bem na categoria de
patrimônio cultural de uma comunidade é talvez a questão mais tormentosa para a efetivação
de sua proteção.
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Carlos Marés de Souza Filho observa que a preservação deve ser criteriosa e não
pode abranger o conjunto indiscriminado das manifestações culturais, sob pena de se tentar
estabilizar um processo cuja característica é a dinamicidade e assim prejudicar a própria
produção cultural7.
O processo cultural, como todo processo humano, é dinâmico.
Somente as manifestações culturais que possam ser enquadradas em algum dos
conceitos do artigo 216 da Constituição Federalo dignas de proteção especial. É com
relação a estas manifestações que se utiliza a expressão patrimônio cultural.
Segundo Carlos Frederico Marés de Souza Filho, os bens culturais têm um valor
intrínseco, que os diferencia dos demais e que se constitui em pré-requisito para a sua
proteção8.
Bem a propósito, José Afonso da Silva observa que os valores fazem parte da
realidade e apenas abstratamente podem ser concebidos como objetos independentes: “são
projeções do espírito humano que impregnam de sentido, de valorações, o mundo do ser.”9
Assim, adotando-se um ensinamento de Miguel Reale, observa-se que o “bem
cultural pode apresentar dois elementos: - ao primeiro chamaremos de ‘suporte’ e ao segundo
de ‘significado’, sendo este a expressão particular de um ou mais valores”10.
Ainda segundo Miguel Reale, os bens culturais devem não apenas ser explicados,
mas compreendidos, o que envolve a análise de um elemento valorativo ou axiológico que lhe
confere um sentido ou um significado especial11.

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