Biodiversidade e conhecimentos tradicionais

AutorPriscila Pereira de Andrade
Páginas3-32

Priscila Pereira de Andrade. Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB); bolsista do CNPq; bolsista do PICUniCEUB; pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente (GERIMA). priscila_andrade@hotmail.com

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1 Introdução

No âmbito internacional, a questão da biodiversidade já aparecia no “Relatório Brundtland”, da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Contudo, um dos eventos mais importantes realizados internacionalmente foi a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD 92, também conhecida como Rio 92), em que foram firmados acordos sobre o uso sustentável da biodiversidade. A CNUMAD 92 deu origem à Agenda 21, um cronograma mundial para o desenvolvimento sustentável internacional, e à Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB).

A Convenção sobre a Diversidade Biológica entrou em vigor em 29 de dezembro de 1993. O termo biodiversidade ficou conhecido como a variabilidade de organismos vivos de todas as origens e os complexos ecológicos de que fazem parte, compreendendo a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de ecossistemas (PÉRET DE SANT’ANA, 2002 p. 29). Contudo, o conceito passou por profunda transformação, abrangendo, além de mera variabilidade das espécies, a diversidade genética e ambiental. A biodiversidade, como conjunto de recursos biológicos e genéticos, tornou-se uma aposta econômica tanto por parte de países detentores de tecnologia, como os detentores de biodiversidade, em sua maioria, países em desenvolvimento.

O Brasil apresenta a maior biodiversidade do mundo graças à extensão territorial e à posição geográfica. Estima-se que o país possua entre 15% e 20% do número total de espécies do mundo, superior a 55 mil espécies descritas, cerca de 22% do total mundial.1 A diversidade cultural também impressiona. São 206 culturas indígenas que falam mais de 160 línguas, além de diversas comunidades locais, como seringueiros, quilombolas, ribeirinhos e praticantes do candomblé que acumularam conhecimento no uso sustentável da biodiversidade (MANCINI 2002).

O aumento do mercado mundial de produtos biotecnológicos2 e farmacêuticos com origem biológica (derivados de vegetais, animais, insetos e outros) evidenciou a importância doPage 5 material genético neste novo século. Possuir ou ter acesso à biodiversidade tornou-se algo estratégico. Entretanto, a riqueza e a variedade da biodiversidade podem significar novo problema: como encontrar, na grande quantidade de material genético, o que pode gerar um produto inovador?

A bioprospecção, ou seja, o método de localizar, avaliar e explorar a diversidade de vida de um local com o objetivo de encontrar recursos genéticos e bioquímicos para fins medicinais e comerciais, aumentou consideravelmente nos últimos anos, com a aplicação de novas tecnologias científicas. Um exemplo é o desenvolvimento de fármacos e cosméticos com a biodiversidade de plantas.

A etnobotânica, ou o estudo dos conhecimentos botânicos e de utilização de plantas pelas comunidades tradicionais, é uma ciência cada vez mais utilizada como orientadora de atividades de bioprospecção. No entanto, com o intuito de obter maior lucro por meio dos resultados de pesquisas, cientistas e firmas que realizam a bioprospecção baseada em etnoconhecimento nem sempre reconhecem e valorizam o conhecimento de comunidades locais.

A proteção dos conhecimentos tradicionais, das inovações e dos direitos indígenas e de pessoas de comunidades locais, na maior parte das vezes, nem sequer é mencionada. As formas de proteção de conhecimento tradicional existentes não são aplicáveis ou eficientes. Elaborar novas maneiras de proteção é crucial, tendo em vista que esses conhecimentos são ponto-chave para a atividade de bioprospecção.

O presente artigo tem como objetivo analisar questões relacionadas às definições de conhecimento tradicional e povos indígenas, tendo em vista o surgimento do “mercado biotecnológico” e o uso do conhecimento tradicional associado à biodiversidade. Na primeira parte, serão relacionadas normas e convenções existentes, nacionais e internacionais, como a Convenção sobre Diversidade Biológica e os tratados referentes à propriedade intelectual. Serão traçadas linhas gerais sobre a legislação interna do Brasil, formas e pontos essenciais para criação de alternativa de proteção de tal conhecimento, ou seja, uma proteção sui generis. Serão analisadas as etapas do processo de bioprospecção e as opiniões indígenas relacionadas ao tema. Na segunda parte, serão definidos os contratos existentes para os recursos genéticos. Por fim, serão especificadas as formas de acesso e divisão de benefícios que vem ocorrendo nesses últimos anos.

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2 Conceitos e normas relevantes
2. 1 Conhecimento tradicional

A noção de conhecimento tradicional, conhecimento indígena e povos indígenas tem sido indispensável em debates internacionais relacionados ao desenvolvimento sustentável com base na biodiversidade. Embora muito esforço tenha sido empregado a fim de conceituar esses três tópicos, não existem definições universalmente aceitas.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que faz referência a povos indígenas e pessoas tribais de países independentes, considerou povos indígenas como:

“Art 1 - Pessoas de países independentes que são conhecidas como indígenas por serem descendentes de populações que habitavam o país, ou região geográfica, ao qual o país pertencia no período da colonização e que independente de sua posição legal, conserva um pouco ou toda sua instituição social, econômica, cultural e política” (OIT.).

Para essa convenção, pessoas tradicionais são aquelas que detêm costumes nãoescritos, crenças e rituais transmitidos de geração em geração, não precisam necessariamente ter ocupado o território antes da colonização, podendo até ser imigrantes. Com isso, pessoas tradicionais não são necessariamente indígenas, mas povos indígenas são tradicionais.

Em nosso e em outros países, fala-se em povos indígenas, ao passo que, na Austrália, por exemplo, a forma genérica para designá-los é aborígine. Indígenas ou aborígines, ambos os termos significam “originário de determinado país, região, ou localidade”. Nativos e autóctones são outras expressões utilizadas, ao redor do mundo, para denominar esses povos. Independentemente da nomenclatura usada, todos os povos indígenas, aborígines e autóctones apresentam, em comum, o fato de cada qual se identificar como coletividade específica organizada antes da colonização, distinta de outras com as quais convive e, principalmente, do conjunto da sociedade do país onde está. É importante notar que existem autores, como Posey e Dutfield (1996), que não fazem distinções quanto a povos indígenas e pessoas tradicionais ePage 7 utilizam esses conceitos de maneira permutável. Contudo, acreditamos que tal distinção seja indispensável.

O termo tradicional está relacionado à tradição. Segundo Bueno (1996), tradição é “a transmissão oral de lendas ou narrativa; transmissão de valores espirituais de geração em geração; conhecimento ou prática proveniente de transmissão oral ou de hábitos inveterados; recordação; memória; costume, uso”. Uma relação similar pode ser feita entre conhecimento tradicional e conhecimento indígena. O conhecimento tradicional é aquela sabedoria convencional relacionada à cultura em si ou ao ecossistema local no qual existe, sendo assegurado a pessoas de culturas diferentes. Por outro lado, o conhecimento indígena é garantido e usado por pessoas que se identificam como índios de determinado local por apresentarem cultura diferente da população pós-colonização existente. Assim, o conhecimento indígena pode ser uma categoria do conhecimento tradicional, mas o conhecimento tradicional não é necessariamente indígena.

Desta maneira, o conhecimento tradicional constitui práticas, conhecimentos empíricos e costumes passados de pais para filhos e crenças das comunidades tradicionais que vivem em contato direto com a natureza, ou seja, é o resultado de um processo cumulativo, informal e de longo tempo de formação. É tido como patrimônio comum do grupo social. Tem caráter difuso, pois não pertence a este ou aquele indivíduo, e sim a toda a comunidade.

É comum associar a origem de um conhecimento tradicional a uma comunidade tradicional, no entanto é possível que a origem desse conhecimento seja de uma cidade ou, até mesmo, de uma única pessoa. Por exemplo, se existe uma planta em determinada localidade, na qual somente as pessoas da cidade mais próxima têm conhecimento sobre sua eficiência medicinal, trata-se de conhecimento próprio daquela cidade, por isso tradicional. Não se pode, assim, generalizar que a origem do conhecimento tradicional seja sempre de uma comunidade local, podendo ser obtido em uma cidade ou vilarejo.

É preciso atentar para que o conhecimento tradicional seja um conceito mais amplo que conhecimento tradicional associado à biodiversidade, pois este último é apenas uma parte daquele primeiro, que envolve práticas culturais, como, por exemplo, a arte. O conhecimento tradicional relativo à diversidade biológica é indispensável para a conservação da biodiversidade global assim como para seu uso sustentável. A...

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