O Caso do Blindado Caveirão: Apontamentos sobre controle jurisdicional de políticas públicas em matéria de segurança

AutorTaiguara Libano Soares e Souza
Páginas3-29

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“O interrogatório é muito fácil de fazer / pega o favelado e dá porrada até doer.

O interrogatório é muito fácil de acabar / pega o bandido e dá porrada até matar. (...)

Esse sangue é muito bom / já provei não tem perigo é melhor do que café / é o sangue do inimigo. (...)

Bandido favelado / não se varre com vassoura Se varre com granada / com fuzil metralhadora.”

(“Grito de guerra” de treinamento do BOPE)

I A militarização da segurança pública no Rio de Janeiro

A gestão1 biopolítica2 das populações subalternas é fortemente presente na história da América Latina3. Dentro deste contexto, o Estado do Rio de Janeiro, nas últimas duas décadas, foi palco da ascensão de um modelo de segurança pública baseado na criminalização das comunidades periféricas. O Estado, que se mostra incapaz de superar a crescente crise social, empenha seus esforços em uma gestão penal da miséria. Esta tendência tem profundas e obscuras relações com a problemática do mercado de trabalho. Como bem descreve Zigmunt Bauman, a pobreza não se enfileira mais no mercadoPage 4 de reserva de mão-de-obra. Há na atualidade uma massa inimpregável de miseráveis que são descartáveis4.

A figura do traficante substitui o militante comunista, dos “anos de chumbo”, como o novo inimigo público a ser combatido na cruzada de guerra contra as drogas5. As periferias e sua juventude pobre tornam-se as novas classes perigosas. Nas palavras de Wacquant, essas categorias ontológicas não mais necessitam se associar às condutas criminosas, mas, passam a ser, elas próprias, crimes. Assim “a manutenção da ordem de classe e da ordem pública se confundem”6. Tal mandamento coloca-se em prática através do que Nilo Batista designa de “política criminal com derramamento de sangue”7.

Convém, antes de abordar o caso do “Caveirão” propriamente, ensejar um breve resgate histórico deste processo de militarização da segurança pública que se desenha no Rio de Janeiro.

No ano de 1999, Anthony Garotinho toma posse como governador do Estado, com promessas de realização de reformas profundas para combater os anos de crescente violência criminal. A equipe recém-nomeada adota uma série de medidas, como o uso de inteligência para combater o crime, e bem como policiamento com base em direitos humanos e na comunidade, buscando ainda acabar com a corrupção e a criminalidade que haviam infiltrado na polícia do Rio de Janeiro em todos os níveis8.

Todavia, o legado deixado após o mandato de Rosinha Matheus Garotinho, esposa de Anthony Garotinho e sua sucessora no governo do estado, em dezembro de 2006, não alterava o quadro de violência. Sete anos depois, a taxa de homicídios ainda era de mais de 6.000 mortes por ano, e as estatísticas para as mortes em ações policiais alcançaram cercaPage 5 de 1.000 por ano9. As facções do tráfico haviam se firmado na maioria das favelas da cidade e dominavam o sistema carcerário. A polícia recorria a estratégias cada vez mais militarizadas para a segurança pública, inclusive com o uso esporádico das forças armadas. A corrupção e a criminalidade continuavam arraigadas na polícia. Um fenômeno recente e que ameaça desestabilizar ainda mais a cidade, foi o surgimento de grupos paramilitares, ou milícias, que começaram a competir pelo controle das favelas no vácuo deixado pelo Estado10.

Ao longo dos dois referidos governos, a segurança pública se politizou. Como foco do conflito entre o governo estadual e o governo federal, o debate sobre a segurança pública muitas vezes girava em torno do ganho de capital político em vez do trabalho em busca de soluções em parceria. Ao fim do mandato, não somente não havia introduzido as reformas prometidas, como também aparentemente ignoraram a presença de pessoas no poder com interesses na permanência da criminalidade e na violência contínua nas comunidades pobres.

Após tais episódios, o policiamento no Rio de Janeiro continua sendo caracterizado por operações em grande escala em que unidades da polícia “invadem” as favelas com armamentos pesados, retirando-se assim que as operações são concluídas. Estas incursões causam enorme sofrimento às comunidades e resultam em benefícios residuais. Tal modus operandi põe em risco a vida de toda a comunidade, inclusive das agências policiais. Em muitos casos, acarretam danos a veículos, imóveis e a infra-estrutura local, provocam o fechamento do comércio e criam condições semelhantes a um toque de recolher. Desta forma, impede o livre acesso dos cidadãos ao trabalho ou ao estudo, com claros reflexos em custos financeiros e sociais que perduram após a conclusão da operação. Constitui-se real e gravosa afronta ao direito fundamental de ir e vir. Quando a polícia se retira, as facções do tráfico ou as milícias retomam o controle. As questões sociais que são raízes de tal problemática – a exclusão social e a criminalidade – permanecem inalteradas, demonstrando a ineficiência deste padrão bélico enquanto política pública.

A dependência constante de operações deste escopo, executadas ostensivamente para combater facções do tráfico estabelecidas em comunidades, suscitaPage 6 perguntas sérias sobre os objetivos da política de segurança pública. Sete anos após a posse do casal Garotinho, poucos esforços haviam sido feitos para integrar a grande maioria das comunidades pobres e oferecer-lhes um policiamento efetivo e garantia de serviços sociais.

O atual governador, Sérgio Cabral Filho (PMDB), iniciou o mandato (2007-2010) com promessas de reformas profundas nos programas de segurança pública, inclusive com declarações públicas no sentido da restrição do uso do veículo blindado da polícia, conhecido como caveirão e maior cooperação entre os estados do Sudeste e o governo federal para combate ao crime organizado. No entanto, o uso recorrente de operações violentas lançadas contra as comunidades permanece a tônica da política criminal de segurança pública. A atuação policial passa a se caracterizar pela realização de mega-operações que mobilizam um grande contingente policial e deixam um grande saldo de mortos e feridos. Foi assim na mega operação policial realizada no Complexo do Alemão no dia 27 de junho de 2007, e em tantas outras execuções coletivas promovidas por agentes policiais - chacinas que antes ocorriam na calada da noite, clandestinas, hoje são oficialmente assumidas pelo Estado, à luz do dia, e até mesmo televisionadas11.

A dependência do policiamento repressivo na política de segurança pública do Rio de Janeiro coincidiu com um aumento repentino e dramático dos homicídios policiais em situações oficialmente documentadas como "resistência seguida de morte" ou "autos de resistência". As matanças subiram de 300 em 1997 para 1.195 em 2003, caindo um pouco em 2005 para 1.098. Este aumento foi acompanhado por um discurso cada vez mais belicoso e combativo, tanto da Secretaria de Segurança Pública do Estado como do governador. Em 2007, primeiro ano da gestão do governador Sérgio Cabral Filho (PMDB), o número de mortos pela polícia do Rio de Janeiro atingiu a maior marca já registrada desde o início da contabilização oficial de mortes em confronto em 1998. Segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), órgão do governo estadual, foram ao menos 1.330 autos de resistência12. Analisando os dados disponíveis de 2007 com os de 2006, o aumento de mortes totaliza 25%. O medo13 e o discurso de “escalada da violência” tem estimulado o recrudescimento das açõesPage 7 policiais gerando uma espiral de letalidade na qual todos sem exceção são vítimas, de modo que a polícia do Rio de Janeiro é a que mais mata e mais morre no mundo14.

Tais episódios têm encontrado total omissão de responsabilidade estatal. Raras são as execuções que foram investigadas de modo efetivo ou independente. Nos poucos casos em que ocorreu, invariavelmente depois de amplos protestos nacionais e internacionais, pareciam muitas vezes execuções extrajudiciais ou casos de uso excessivo da força. Mesmo quando são feitas investigações, as condenações são raras. No caso de maior destaque até hoje, a matança fortuita de 29 pessoas na Baixada Fluminense, em 31 de março de 2005, onze policiais foram presos, dos quais seis foram soltos posteriormente. Até o momento apenas um deles foi julgado e condenado.

Cabe destacar alguns instrumentos jurídicos (apesar de serem questionáveis do quanto à sua constitucionalidade) que materializam as táticas gerais engendradas pelas ações governamentais do Estado do Rio de Janeiro de contenção violenta das camadas pobres da população:

a) Gratificação faroeste. Em novembro de 1995, foi criada a “Gratificação por encargos especiais” (Decreto 2.753/95) pelo então Governador do Rio de Janeiro, Marcelo Alencar (PSDB) — um estímulo monetário dado aos policiais do tipo “matou mais, ganhou mais”. Após a promulgação do decreto, o número de civis mortos mensalmente em confronto com a polícia passara de 15 para 30 (em 1996 e 97). Em estudo elaborado pelo ISER foi constatado que a maior parte destas mortes não ocorreu em confrontos - foram execuções, com tiros na nuca, sem perícia ou testemunhas15. Em 1998, através de lei, a “gratificação faroeste” foi extinta, pois enquanto as mortes de civis dobraram, a criminalidade não diminuía. No entanto, a extinção da “gratificação por bravura”, na prática, não significou seu fim, uma vez que a jurisprudência determinou que os mais de quatro mil policiais que recebiam a gratificação...

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