A boa execução dos contratos de crédito aos consumidores garantidos por hipoteca ou outro direito sobre imóveis de habitação

AutorMariana Fontes Da Costa
Páginas68-93

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Excertos

“O risco da existência de uma discrepância entre o equilíbrio contratual definido hoje para valer no futuro e o equilíbrio contratual que se materializa quando esse futuro se torna presente aumenta de modo diretamente proporcional ao aumento do tempo que separa os dois momentos”

“A adoção de um regime jurídico que promova a boa execução dos contratos de crédito hipotecário tem necessariamente de refletir os riscos que o prolongamento alargado no tempo – característico da larga maioria destes contratos – tem sobre o equilíbrio da relação contratual”

“Não pode ignorar-se que o contrato de crédito hipotecário, tal como delimitado pela Diretiva 2014/17/UE, constitui um contrato de consumo”

“Ao contrário do que ocorre com a celebração de contratos de mútuo hipotecário em moeda estrangeira, o problema do crédito hipotecário a taxa de juro variável atinge proporções muito elevadas em Portugal”

“O tema da renegociação do contrato não foi objeto autónomo de tratamento pela Diretiva 2014/17/UE, mas constitui um tópico de relevância central na prevenção do incumprimento e merece, como tal, a atenção do legislador”

“A duração prolongada dos contratos de crédito hipotecário tornaos especialmente propensos a enfrentar alterações do contexto económico envolvente e do contexto pessoal do consumidor-mutuário”

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1. Considerações introdutórias

Segundo2 dados disponibilizados pelos boletins estatísticos do Banco de Portugal3, o crédito à habitação constitui, por elevada margem, a principal fonte de endividamento das famílias portuguesas: em dezembro de 2016, o saldo dos empréstimos para habitação representava mais de 80% do total de crédito concedido a particulares, à semelhança dos anos anteriores.

A crescente liberalização do acesso ao crédito e desregulamentação dos mercados financeiros a que se assistiu, sobretudo, na década de 1990 associada ao processo de integração europeia, com a subsequente descida acentuada das taxas de juros, geraram um forte estímulo à aquisição de casa própria com recurso a crédito barato e abundante4.

A esta conjuntura favorável, acresceram as políticas de habitação promovidas pelo Estado português, assentes na ampla disponibilização de regimes de crédito bonificado5e a paralela estagnação do mercado de arrendamento, consequência de uma regulamentação dirigista, que culminou no congelamento administrativo das rendas durante mais de três décadas.

Apesar do clima de expansão a que se assistiu desde 1996 até ao ano de 2007, as taxas de incumprimento no crédito à habitação permaneceram relativamente estáveis e tendencialmente baixas, especialmente se comparadas com as taxas de incumprimento no crédito ao consumo. Explicar-se-á, em grande medida, esta realidade pela diferença de perfil associado ao devedor médio de cada uma destas modalidades de crédito: enquanto o devedor de crédito à habitação de referência à data da eclosão da crise económico-financeira de 2007 apresentava uma situação económica e profissional estável6, o consumidor com dívidas não hipotecárias recorria ao crédito como último recurso, para colmatar uma situação económica já precária.

Sucede que a crise económico-financeira que eclodiu em 2007 veio perturbar este estado de relativa sanidade do sistema, tendo como dois efeitos centrais ao nível do mercado financeiro uma forte contração na concessão de crédito à habitação e uma subida significativa das taxas de incumprimento desta modalidade de crédito.

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Assim, se entre 1996 e 2007, a concessão de crédito à habitação e créditos conexos7em Portugal gozou de uma trajetória tendencialmente ascendente (com um pequeno retrocesso no primeiro trimestre de 2003, rapidamente recuperado), este movimento começou a inverterse a partir do quarto trimestre de 2007, intensificando-se a tendência de contração na concessão de crédito a partir de 2010. Deste modo, e a título de exemplo, entre 1º de outubro de 2011 e 30 de setembro de 2012 assistiu-se a uma descida de 58,7% no número de contratos enquadrados no regime do crédito à habitação face ao período homólogo anterior8.

Paralelamente à contração na concessão de crédito bancário – que afetou todos os setores da economia e da sociedade portuguesas –, assistiu-se a uma subida das taxas de incumprimento dos contratos de crédito contraídos por particulares fora do âmbito de atividades comerciais e profissionais. Ainda que esse aumento tenha sido, como referimos, mais intenso no crédito ao consumo, não deve cair-se na tentação de minorar os efeitos profundamente nefastos da crise económico-financeira de 2007 no aumento do incumprimento pelos consumidores das suas dívidas garantidas por hipoteca, com a consequente penhora e venda judicial ou adjudicação de inúmeras casas de morada de família.

Recorrendo às estatísticas oficiais do Banco de Portugal, a percentagem de devedores de crédito à habitação com crédito vencido em dezembro de 2009 era de 5,2%, passando para 6,1% em dezembro de 2012 e para 6,3% em dezembro de 20159. Segundo dados avançados pelo jornal Expresso em divulgação de estudo elaborado pela Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP), só nos primeiros três meses de 2012 foram entregues aos bancos pelas famílias e promotores imobiliários 2.300 imóveis por falta de pagamento, numa média de 25 habitações por dia10.

As causas desse aumento do incumprimento do crédito à habitação são variadas, mas poderão apontarse o aumento acentuado da taxa de desemprego, os cortes de salários e o aumento do peso dos impostos como fatores principais

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As causas desse aumento do incumprimento do crédito à habitação são variadas, mas poderão apontar-se o aumento acentuado da taxa de desemprego, os cortes de salários e o aumento do peso dos impostos como fatores principais11.

Também têm sido apontados como fatores para a afetação do crédito à habitação pela crise económico-financeira de 2007 a especulação do valor dos imóveis e a desadequada avaliação do risco de desvalorização, associada à falta de manutenção de uma margem de segurança adequada entre o valor do imóvel hipotecado e o valor do crédito concedido (loan to value ratio)12. A estes fatores acresceram algum facilitismo na concessão de crédito hipotecário13, por vezes sem o necessário rigor na consideração da taxa de esforço do devedor face a uma potencial variação mais intensa do valor dos juros praticados e/ou do rendimento disponível14.

Foi nesse contexto (e, acrescentaríamos, em grande medida por causa desse contexto) que foi adotada a Diretiva 2014/17/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014, relativa aos contratos de crédito aos consumidores para imóveis de habitação.

Conforme resulta dos seus considerandos, essa diretiva tem essencialmente dois propósitos fundamentais15. O primeiro reside em propiciar a aproximação dos regimes legais dos países da União Europeia sobre créditos a consumidores garantidos por hipoteca ou outros direitos sobre imóveis de habitação, estimulando a “promoção do desenvolvimento das atividades transfronteiriças” e a “criação de um mercado interno de contratos de crédito para imóveis de habitação” (2º considerando). O segundo consiste em combater e desincentivar a adoção de comportamentos de risco e reprimir práticas irresponsáveis de concessão de crédito, que estiveram na origem da crise de 2007, repondo a confiança dos consumidores no setor financeiro (3º e 4º considerandos).

A Diretiva 2014/17/UE centrou, sobretudo, o seu esforço para promoção deste último objetivo na regulamentação dos deveres dos profissionais ligados ao setor e na fase pré-contratual, com resultados que esperamos positivos para a transparência e idoneidade do setor financeiro.

Na nossa opinião, esse esforço ficou, contudo, francamente aquém na consagração dos patamares mínimos de proteção do consumidor

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em caso de incumprimento contratual e execução da hipoteca, não dando resposta satisfatória ao problema central da perda da habitação (frequentemente a casa de morada de família) e manutenção da obrigação de pagamento do valor remanescente da dívida, inerente à adoção do sistema de full recourse16.

O presente artigo centrar-se-á, porém, no momento intermédio entre a fase das negociações e a potencial ocorrência de incumprimento, cuja relevância é tantas vezes descurada, quer pelo legislador, quer pelos operadores de mercado. Dedicaremos as próximas linhas ao problema da boa execução do contrato e ao seu impacto na prevenção do incumprimento e na promoção da livre concorrência e do equilíbrio contratual.

2. A natureza duradoura e a proteção do consumidor como vetores de referência na promoção da boa execução do contrato de crédito hipotecário

Seguindo a distinção clássica de Giorgio Oppo17, o prolongamento no tempo do vínculo contratual pode desempenhar essencialmente uma de três funções18.

Numa primeira função, uma ou ambas as partes têm interesse em que o cumprimento da obrigação ocorra em momento temporal posterior ao da celebração do contrato, sendo precisamente a distância (rectius, o prazo) que medeia entre a celebração do contrato e o seu cumprimento – e não a duração do vínculo, per se – o elemento central para a promoção do interesse do sujeito. Esta função dilatória do...

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