A boa-fé objetiva no âmbito dos contratos relacionais

Páginas97-144
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A BOA-FÉ OBJETIVA
NO ÂMBITO DOS
CONTRATOS RELACIONAIS
3.1 Traços genéticos. Visão de Clóvis do Couto e Silva
Conforme asseverado no subcapítulo 2.1 (escorço histórico da boa-fé), o
§ 242 do BGB (somando ao § 157) foi precursor da fundação de uma concep-
ção absolutamente inovadora da relação obrigacional e, portanto, do contrato.
Entretanto, não signicou, àquele momento, entrega de poder criacional ao
magistrado.
Nada obstante, a mera aplicação do princípio, ou seja, exigir que os con-
tratos fossem interpretados conforme exige a boa-fé, considerando-se os usos
de tráco, em meio à concomitante compreensão dos chamados deveres ane-
xos, fez aproximar a relação obrigacional como era entendida na Alemanha
àquela da common law, na medida em que ao “vínculo dialético e polêmico,
estabelecido entre devedor e credor”, adicionam-se elementos “cooperativos
necessários ao correto adimplemento366.
Clóvis do Couto e Silva é categórico ao armar que se trata da aplicação no
Direito alemão do antecipated breach of contract, conceito típico da common
law ou Direito anglo-saxão, salientando que a grande importância desse fato é
366 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito brasilei ro e
português , cit., p. 36-37.
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RENATO RODRIGUES COSTA GALVANO
a provocação do início de uma imensa transmutação da relação obrigacional,
vez que se admitem os já referidos deveres anexos, acessórios ou implícitos
juntamente com a obrigação principal objeto do contrato367. Na verdade, alar-
ga-se o objeto para que tais deveres também o componham, como ocorre no
âmbito dos contratos relacionais, cerne do presente trabalho dissertativo.
Retomando a antecipated breach of contract ou quebra antecipada do con-
trato ou, ainda, quebra positiva do contrato, como se costuma denominar no
Brasil, temos que a obrigação é tomada por deveres anexos, instrumentais e
independentes, que se ligam à aplicação da boa-fé. Diante disso, os magistra-
dos, já assumindo um inevitável papel de criar direitos e deveres, começaram
a declarar a nulidade de contratos em que houvesse a comprovação de adoção
de abusos do poder econômico por uma das partes contratantes, pelo funda-
mento de contrariarem os bons costumes. Observa-se o distanciamento, nesse
momento, da jurisprudência germânica em relação à concepção da separação
dos poderes segundo critérios estritos de Montesquieu368.
Ou seja, em que pese a falta de disposição legal expressa àquele tempo,
início do século XX, contratos em que uma das partes sofresse abuso do po-
der econômico da outra, resultando em importante inferiorização superve-
niente, eram nulos como consequência da aplicação do princípio da boa-fé
(objetiva)369.
O juiz passava a executar o trabalho de fazer suas decisões acompanharem
as alterações socioeconômicas ao longo do tempo, eis que as cláusulas gerais,
em especial a boa-fé objetiva, são dotadas de uidez e exibilidade quanto
à aplicação. Disso decorre a possibilidade de incrementar-se mais justiça às
decisões exaradas, mas também, por outro lado, de haver cometimento de
arbitrariedades que contrariem o direito posto, em uma aventura legiferante
daqueles que devem apenas julgar370.
367 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito brasilei ro e
português , cit., p. 38.
368 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito brasilei ro e
português , cit., p. 38-39.
369 Nos anos 1920, na Aleman ha da hiperin ação, surgiu a doutr ina da “quebra ou
desaparecimento da b ase do negócio”, que servia ao mesmo propósito da “quebra positiva
do contrato”, algo que também in uenciou a jurisprudência (COUTO E SILVA, Clóvis
Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito bra sileiro e português, c it., p. 39).
370 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito brasilei ro e
português , cit., p. 39-40.
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A BOA-FÉ OBJETIVA NO ÂMBITO DOS CONTRATOS RELACIONAIS
De qualquer forma, não é por acaso a aproximação que se deu entre o
Direito germânico continental e o Direito da common law porque as situações
repetem-se independentemente do local e as criações jurídicas para amoldá-
-las seguem a mesma sorte, o que expõe, igualmente, a diferença de grau da
boa-fé objetiva no âmbito dos contratos relacionais, que são criação doutriná-
ria norte-americana, mas que repercute da mesma forma em outros sistemas
jurídicos, como o nosso.
Isso ca claro quando observamos apontamentos de Clóvis do Couto e
Silva feitos no nal da década de 1970, que valem aqui a reprodução, in verbis:
O princípio da boa-fé endereça-se sobretudo ao juiz e o instiga a for-
mar instituições para responder aos novos fatos, exercendo um controle
corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da relação
obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela ou-
tra parte. A principal função é a individualizadora, em que o juiz exerce
atividade similar à do pretor romano, criando o “Direito do caso”. O
aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir um va-
lor autônomo, não relacionado com a vontade. Por ser independente da
vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional já não se mede
com base somente nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes
ao contrato, permitindo-se “construir” objetivamente o regramento do
negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por
vezes, até mesmo ao controle das partes371.
3.2 Âmbito relacional propriamente dito
A sociedade complexa da atualidade, permeada por não menos complexas
relações econômicas, não mais consegue viver sob a égide da esquematização
rígida trifásica do contrato: conclusão, execução e extinção, a qual não se adap-
ta a várias situações. Ofertar mais aceitação não signica dizer que o contrato
esteja totalmente formado, eis que muitos deles não chegam a ter objeto deter-
minado a priori, o que não quer dizer que não seja determinável, haja vista o
art. 104, II, do Código Civil Brasileiro372.
371 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no direito brasilei ro e
português , cit., p. 42.
372 AZEVEDO, Antonio Ju nqueira de. Consideraçõ es sobre a boa-fé objetiva em acordo de
acionistas com cláus ula de preferência: excertos teóric os de dois pareceres. In: AZE VEDO,
Antonio Junqueira de. Novos e studos e pareceres de direito priva do, cit., p. 127.
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