Breves considerações acerca do princípio da especialidade no direito de marcas

AutorEnzo Baiocchi
Páginas123-159

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1. Introdução

Como em todo ramo do Direito, não poderia faltar ao direito de marcas a existência de princípios basilares que regem a matéria. Mas, dentre eles, um se destaca em particular. Ao longo de décadas, tanto a doutrina como a jurisprudência de vários países, incluindo o Brasil, foram unânimes em reconhecer o princípio da especialidade como a regra fundamental em todo o sistema de registro e proteção da marca registrada. Com o passar dos anos, porém, o sistema do direito de marcas teve não só de se adequar às novas realidades sócio-econô-micas ditadas, em grande parte, pelos efeitos da globalização da economia e de um mercado dito de livre concorrência, mas como também atender a imperativos de Direito Internacional, a fim de incorporar; por exemplo, as novas regras de "proteção mínima" estabelecidas pelo Acordo TRIPs, no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Nesse novo contexto, especulou-se a perda de importância deste princípio, principalmente em face da proteção especial à marca de alto renome em todos os ramos de atividade e da questão do alargamento da proteção à marca notoriamente conhecida. Todas estas questões serão aqui analisadas.

Tendo em vista as constantes transformações a que se viu sujeito o princípio da especialidade das marcas, justifica-se a atua-lidade do tema, que tem na abordagem crítica o objetivo de buscar entender o sentido e a importância de tal princípio não isoladamente, mas como parte do sistema de direito de marcas em que está inserido. Sempre que possível, buscou-se fazer uma abordagem comparativa do Direito, trazendo à luz dispositivos de leis estrangeiras, bem como opiniões pontuais de autores

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nacionais e estrangeiros sobre a matéria, haja vista se tratar de regra universal no direito de marcas, sendo comum a vários ordenamentos jurídicos. Ao final, após se enunciar as consequências decorrentes da interpretação e aplicação de tal princípio, conclui-se que ele continua sendo de vital importância no âmbito da proteção à marca registrada, embora deva ser interpretado levando-se em consideração o novo contexto histórico-jurídico em que está inserido,

2. Conceito e noções iniciais

Em linhas gerais, o princípio da especialidade pode ser definido como a regra basilar que limita o direito de propriedade industrial do titular de uma marca registrada, e seu uso exclusivo, a certo produto ou serviço, na classe e no ramo de mercado correspondentes à sua atividade em todo o território nacional. Assim, um sinal, para ser registrado como marca, deve ser especial, e a especialidade se verifica nos produtos ou serviços para os quais o registro foi concedido ou para produtos ou serviços semelhantes ou afins.

Da aplicação deste princípio substancial no direito de marcas decorre que a proteção conferida à marca abrange não apenas os produtos ou serviços identificados no certificado de registro, mas como também os produtos ou serviços que guardam entre si certa afinidade. Assim sendo, é livre a apropriação do mesmo sinal por terceiros para assinalar produtos ou serviços completamente distintos, sem a oposição do titular da marca original.1 Em outras pala-vras, significa dizer que a proibição de reprodução ou imitação de marca alheia registrada não é absoluta, pois é certo que, de acordo com o princípio da especialidade, sendo diferentes os produtos ou serviços a que a marca se destina, é lícito o registro.2 Nesse sentido, o objetivo da regra é evitar a apropriação e o uso de sinal como marca que se refira a produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim já assinalado por marca registrada alheia, passível de produzir um risco de erro ou confusão de uma com outra no mercado.3 Aliás, como bem observou Ferrer Correia, "a marca deixaria de desempenhar sua finalidade distintiva para se transformar em elemento de confusão".4 Assim, a marca deve ser cons-

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tituída de tal maneira que não se confunda com outra anteriormente registrada pelo concorrente; ou seja, a proibição de que trata o inciso XIX do art. 124 da Lei 9.279, de 14.5.1996, refere-se a marcas de terceiros.5 Além disso, vale lembrar que ao titular de uma marca é lícito requerer inúmeros registros para o mesmo sinal (pluralidade de marcas), modificados ou não, incluídos ou não no registro de novas marcas, desde que estejam compreendidos por sua atividade empresarial.6

A limitação imposta pela regra da especialidade à propriedade industrial sobre a marca tem também por objetivo evitar o exclusivismo de seu uso de modo ilimitado. E isso se traduz em efeitos práticos, à medida que evita que outros interessados se apropriem de um sinal que seja res nullius e tenham a obrigatoriedade de se informar não só das marcas anteriormente registradas para o ramo empresarial que estes exercem, mas também de todas as demais marcas registradas para todo e qualquer ramo de empresa. Do contrário - como bem lembrou Bento de Faria7 -, seria permitir o monopólio para fins de registro de uma infinidade de sinais distintivos, o que viria a embaraçar, sem necessidade, a livre escolha dos concorrentes.

Do princípio da especialidade decorre que o conteúdo do direito à marca registrada não se traduz na proteção de um sinal

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distintivo abstratamente considerado, e que se estenda irrestritamente a todo e qualquer tipo de exploração económica, mas sim de um sinal em correlação com determinados produtos ou serviços concretos.8 Sendo assim - como conclui Franceschelli9 -, é justamente com relação ao caráter do conteúdo ou eficácia da marca que se refere a especialidade, o que faz com que a marca possa distinguir não qualquer objeto, mas somente uma classe ou género deste; não toda manifestação da atividade de uma empresa, mas precisamente os produtos que fabrica, distribui ou comercializa ou os serviços que oferece ou que presta. Nesse contexto inserem-se não apenas as pessoas físicas ou jurídicas que exerçam atividade económica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços, mas como também as associações civis.10 Assim, segundo lições de Kur,11 tanto o ato de registro quanto a regra fundamental de proteção à marca dentro dos limites da similaridade servem para manter a certeza jurídica e são, por isso, os fundamentos da proteção à marca registrada.

Como visto, o princípio da especialidade é uma das regras básicas no direito de marcas - comum, inclusive, a outros ordenamentos jurídicos. De modo semelhante, estabelece, por exemplo, o direito de marcas francês, no art. L 713-1 do Code de Ia Propriété Intellectuelle, que o registro de marca confere ao seu titular um direito de propriedade para os produtos e serviços que a mesma designar. Nas palavras de Mathély,12 esta é a regra clássica da especialidade. Trata-se de uma regra substancial, pois ela decorre, direta e necessariamente, da natureza e função da marca. É, ainda, regra que delimita o âmbito de proteção à marca registrada. No direito de marcas alemão, por sua vez, embora a expressão "princípio da especialidade" não seja usual, a matéria é estudada sob o prisma dos impedimentos relativos à proteção (registro) da marca (relative Schutzhinder-nisse), o que acontece quando já existe pedido de registro ou registro de marca anterior (Kollisionsfall), nos termos do § 9 da Markengesetz, de 25.10.1994.13

3. Marcas defensivas e uso obrigatório da marca

O caso de pluralidade de marcas de um mesmo titular, como visto mais acima.

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distingue-se, todavia, da hipótese de marcas defensivas (de defesa) ou de reserva. Aqui, trata-se de registros preventivos feitos pelo titular da marca por inúmeros motivos e que não se destinam, pelo menos a curto prazo, ao uso efetivo. Nesses casos podemos encontrar, por exemplo, o caso de registro preventivo, seja como "defesa" para evitar uma eventual confusão com sinais de terceiros, ou como simples "reserva" do titular para uso posterior, no caso de registro preventivo em países estrangeiros para garantir futuras exportações de produtos assinalados pela marca, evitando indesejáveis registros anteriores por parte do concorrente, ou, até mesmo, para evitar o uso do mesmo sinal por uma infinidade de titulares. Casos há, ainda, e aqui não parece configurar a hipótese em questão, em que a demora se justifica por razões alheias à vontade do titular, e os produtos farmacêuticos são um bom exemplo disso, pois dependem da autorização de um órgão da Administração Pública para serem finalmente comercializados. Se for este o caso, a demora ou a interrupção do uso da marca se justifica por razões legítimas e não há que se falar em caducidade, pois é certo que nem toda falta de uso da marca pode ser considerada como registro abusivo.14

Contudo, no caso das marcas defensivas ou de reserva - como destacou Gama Cerqueira15 -, além de criar verdadeiras "marcas de obstrução", sobrecarregam inútil e injustificadamente os arquivos das repartições encarregadas do registro de marcas e prejudicam, ainda, os interesses dos demais empresários, na medida em que restringem sobremaneira o campo de escolha de novas marcas. Pois é certo que - como bem observado por Vanzetti e Di Cataldo16 -, se, por um lado, a possibilidade...

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