Breves considerações sobre o instituto da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro

AutorRenata Jardim da Cunha Rieger
CargoAdvogada criminalista Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade IDC
Páginas5-10

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Introdução

O objeto do presente trabalho é o estudo da delação premiada no Ordenamento Jurídico Brasileiro. A delação consiste na confissão, pelo acusado, de sua participação no delito com a concomitante atribuição da participação de outro(s) no mesmo fato. O instituto é polêmico, posto que o acusado, ao confessar e incriminar seu(s) comparsa(s), é beneficiado com a redução de sua pena ou, até mesmo, com o perdão judicial.

Em um primeiro momento, abordar-se-á o conceito e a evolução legislativa do instituto. Logo depois, serão analisados os acordos de delação e o conteúdo ético do Estado. Muitos juristas preconizam a aplicação deste meio probatório, outros repudiam. Estes entendem que o instituto não resiste à menor análise crítica, por ser antiético, imoral e, ainda, atentar contra importantes princípios constitucionais.

Em um terceiro momento, serão discutidos alguns aspectos polêmicos do instituto e feitos alguns questionamentos de ordem prática. Salienta-se que este trabalho não visa a esgotar o tema, mas, tão-somente, a propor e discutir questões sobre a delação premiada, induzindo uma reflexão crítica sobre a matéria.

1. Delação premiada

O verbo delatar significa acusar, denunciar ou relevar. "Premiada", porque o legislador concede prêmios ao delator.

Para Adalberto José Q. T. Aranha, delação, ou chamamento de co-réu, é a "afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação como seu comparsa"1.

Gilberto Thums refere que a delação "ocorre quando o indiciado, espontaneamente, revelar a existência da organização criminosa, permitindo a prisão de um ou mais de seus integrantes"2. Já Damásio de Jesus a conceitua como "a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato)"3.

Nota-se que, para os doutrinadores, a delação premiada consiste, então, na atribuição da prática de um crime a terceiro, realizada pelo acusado, concomitantemente com a confissão de sua participação no delito.

1.1. A delação premiada na legislação brasileira: escorço histórico

A origem da "delação premiada" no Direito Brasileiro remonta às Ordenações Filipinas, cuja parte criminal vigorou de 1603 até o advento do Código Criminal de 1830. Assim, estava em vigor quando da Inconfidência Mineira. Sabe-se que o objetivo desse movimento revolucionário foi alcançar a independência do Brasil. Sabe-se, também, que as tentativas restaram frustradas em virtude das delações efetuadas por alguns dos próprios integrantes, destacando-se Joaquim Silvério dos Reis.

Joaquim Silvério dos Reis entregou todos os planos dos seus companheiros inconfidentes, culminando no fim do conflito e na execução do alferes Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, em 21 de abril de 1972. Relata-se que, nos seus últimos dias, o delator implorou um reles benefício financeiro para a mulher e seus filhos receberem após a sua morte.

Ao analisar o final da vida do delator Joaquim Silvério, o jurista René Ariel Dottiobserva que "a resistência da Conjuração Mineira como de outros grandes movimentos libertários da História tem um saldo muito claro na perspectiva dos seus protagonistas e das outras gerações que os sucederam. O martírio é exaltado; a delação é condenada"4.

Nota-se que a delação premiada encontrava, já nessa época, aplicação prática e que assumia uma conotação pejorativa. Em função de sua questionável ética, acabou sendo abandonada em nosso Direito, reaparecendo em tempos recentes5.

Na década de 1990, a Lei dos Crimes Hediondos regulou o instituto em dois dispositivos. O artigo 7e, § A-, acrescentou o § A-ao artigo 159 do Código Penal, o qual previa que, se o crime de extorsão mediante seqüestro fosse cometido por quadrilha ou bando, o co-autor que lhe denunciasse à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, teria sua pena reduzida de um a dois terços.

Posteriormente, a Lei 9.269/96 deu nova redação a esse parágrafo. O benefício foi estendido a todo o delator que tivesse cometido o delito em concurso de agentes e facilitasse a libertação do seqüestrado. Portanto, atualmente, não se exige mais a caracterização da quadrilha,Page 6 sendo possível aplicar o instituto ao delator, ainda que ele cometa o crime na companhia de apenas um co-autor6.

A segunda hipótese de delação premiada na Lei dos Crimes Hediondos encontra-se no artigo 8e, parágrafo único, o qual determina a aplicação do benefício, com a mesma redução da pena, aos participantes de "bando ou quadrilha" que cometam crimes hediondos. O dispositivo exige o desmantelamento do grupo de criminosos.

Mais tarde, a Lei 9.034/95 dispôs sobre a aplicação do instituto às organizações criminosas. O artigo 6e determina que a pena seja reduzida de um a dois terços quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e de sua autoria.

A Lei 9.080/95 inseriu o prêmio da delação nas Leis 7.492/86 e 8.137/90, que prevêem crimes contra o sistema financeiro nacional e contra a ordem tributária, econômica ou relações de consumo, respectivamente. Nesses crimes, cometidos em quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que relevar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa tem direito à redução de sua pena de um a dois terços. Na doutrina e na jurisprudência, encontram-se dificuldades em delimitar o termo "toda a trama delituosa", melhor seria se tivessem sido estabelecidos critérios objetivos para aferir a valia da colaboração do agente7.

Depois, a Lei 9.613/98 regulou a aplicação do instituto para os crimes de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores. O artigo 1e, § 5e, dessa Lei estabelece a redução de pena e o início do cumprimento em regime aberto, bem como a possibilidade de o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por restritivas de direito, quando o delator prestar esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações e de sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objetos do crime.

A Lei de ProteçãoàTestemunha, 9.807/99, regulou o instituto nos artigos 13 e 14. Trouxe, também, a possibilidade de diminuição e de exclusão da pena. Essa Lei trouxe duas inovações importantes.

A primeira consiste em ser aplicável a todos os crimes, pois não restringiu o uso da delação premiada a determinado grupo de tipos penais8. A segunda, em proporcionar proteção ao réu colaborador.

Também a antiga Lei Antitóxicos, 10.409/02, previa, nos §§ 2- e 3e do artigo 32, a possibilidade de delação premiada. A nova Lei, 11.343/06, regulou, novamente, o instituto. O artigo 41 determina a redução da pena de um terço a dois terços para aquele que colaborar com a investigação na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime. O artigo 49 prevê a aplicação dos instrumentos protetivos de colaboradores e testemunhas da Lei 9.807/99.

Nota-se que há uma série de dispositivos que cuidam da delação premiada no Ordenamento Jurídico Brasileiro e que eles formam um quadro assistemático e confuso. A coexistência, ou não, das normas supramencionadas gera polêmica na doutrina e na jurisprudência.

Afora isso, as regras não parecem ter alcançado os seus objetivos "e as decisões dos Tribunais que as aplicam ainda não permitem uma conclusão segura sobre a essência desse instituto legal na visão da jurisprudência"9.

2. Acordos de delação premiada e o conteúdo ético do Estado

O desembargador aposentado José Carlos Teixeira Giorgis refere que o termo "delação premiada" "passou por instantes de opróbrio e repugnância, consistindo em um vocábulo que traduz acusação secreta ou divulgação de algo sigiloso ou ignorado, e que teve opulência em fases de inquisição ou autoritarismo"10. Segundo o magistrado, atualmente, o termo desfrutaria de foros de dignidade, pois honrado pelo esplendor midiático11.

Na verdade, hodiernamente, há muita divergência acerca da legitimidade do instituto. Para alguns, representa um importante e necessário mecanismo de combate à criminalidade. Para outros, traduz-se em um incentivo legal à traição.

No livro "A luta pelo Direito", escrito em 1872, Rudolfvon Ihering previu um Estado incapaz de desvendar crimes diante das sofisticações e modernidades que estavam por vir. Com base nesse Estado ineficiente, Ihering preconizou12:

"Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade."

Pode-se afirmar que se vive, hoje, no Estado previsto por Ihering e que o instituto da delação premiada é uma modalidade do Direito Premial que ele preconizou. Atualmente, as estruturas criminosas, principalmente aquelas de elevado nível de organização e lucratividade, desenvolvem mecanismos de defesa e proteção de elevada eficácia, alguns deles suportados e alimentados pelo próprio Estado13. E a delação premiada surge, nesse contexto, como eficaz instrumento de investigação.

Na defesa do instituto, alguns juristas...

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