A Busca não Acaba nunca: Conversando sobre a Escravidão Contemporânea

AutorRicardo Rezende Figueira
Páginas24-29

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Ricardo Rezende Figueira 1

Boa tarde, muito obrigado pelo convite. É uma honra participar do evento: Trabalho Escravo Contemporâneo, Desafios e Perspectivas. Cumprimento a casa, cumprimento os que organizam o evento.

De fato, a escravização de gente é um tema candente revela um problema agudo da humanidade. A humanidade tem uma experiência maior da escravidão do que da liberdade. A história da liberdade e da igualdade são recentes, algo que ganhou corpo no século XVIII. A declaração de Virgínia, 1776, e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, trouxeram a novidade dos direitos civis e políticos; trouxeram a declaração de que todos nasciam iguais em direitos. Evidentemente, as declarações foram construídas em muitas lutas sociais por interesses diversos. Os primeiros vitoriosos foram os burgueses, os moradores dos burgos, contra a nobreza. Mas a ideia vai se expandir e atingir grupos sociais que estavam fora da intenção dos que a proclamaram. A concepção de liberdade e igualdade era apenas formal, jurídica e para alguns, para os chamados cidadãos. E estes eram brancos, tinham os meios de produção e o sexo masculino. Ficavam fora as mulheres, os empregados, os não brancos2. Então, a ideia inicial de igualdade e liberdade era para abranger apenas aqueles que tinham “algo a defender”, a propriedade. Mas a ideia chegou às margens, às senzalas. No Haiti, ainda no século XVIII, começou um levante dos escravizados e estes vão virar uma página da história, e o farão contra aqueles que tinham promulgado a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e não os incluíram. Enfrentarão duas vezes as tropas de Napoleão e sairão vitoriosos3.

Mas o que é trabalho escravo? Até 2003, o Código Penal Brasileiro, através do art. 149, afirmava que “reduzir alguém à condição análoga à de escravo” era crime, mas não definia nem o que era análogo, nem o que era escravo. O artigo previa penalidade de dois a oito anos, mas se reduzia a isso. Talvez, pelo pretexto de não haver uma definição clara, poucos eram denunciados, julgados e condenados. Os casos de condenação eram exceções.

Um juiz em Dom Pedro, Maranhão, nos anos 1980, numa questão trabalhista, considerou o que havia se passado em duas fazendas no sul do Pará, Santo Antônio de Indaiá e Santana de Indaiá, como trabalho escravo. E os trabalhadores tinham sido aliciados naquela Comarca. O juiz acolheu a denúncia apresentada pelo promotor, porque o crime teria começado ali e condenou à revelia o fazendeiro e o gato4.

Depois, em 1998, a Procuradora da República, Dra. Neide de Oliveira, que atuava em Marabá, denunciou o proprietário da fazenda Brasil Verde, de Sapucaia, que incorreu por anos seguidos no crime e posteriormente o caso, levado ao Sistema Interamericano, o Estado

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brasileiro foi condenado5. Outra denúncia apresentada pela promotora e acolhida pelo Dr. Leão Aparecido Alves, juiz da Vara Federal de Marabá, foi contra o fazendeiro Antônio Barbosa de Melo, proprietário das fazendas Alvorada (em Água Azul do Norte) e Araguari (em Sapucaia), de onde foram libertadas 20 pessoas. Dr. Leão condenou o fazendeiro. Anos depois, em 2009, o Dr. Carlos Henrique Haddad, hoje da Clínica do Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, na época também juiz em Marabá, proferiu sentenças condenando 27 pessoas que haviam incorrido no crime.

No combate à escravidão, houve dois momentos-chave. Um, aquele no qual foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel. O que se deu em 1995. Outro, em 2003, com a aprovação do I Plano Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo e, no mesmo ano, a aprovação de um novo texto para o art. 149. A mudança do art. 149 certamente favoreceu as condenações decididas pelo dr. Haddad.

A nova redação do artigo foi fruto de uma reflexão que teve início na sede da Procuradoria-Geral da República pouco depois do assassinato de Expedito Ribeiro de Souza, em 2 de fevereiro de 1991. E destas discussões participaram diversas pessoas de organizações sociais e políticas diferentes. Uma das pessoas foi na época o então deputado Nilmário Miranda, presente neste evento. Na ocasião, o Dr. Aristides Junqueira, Procurador-Geral da República, abriu as portas da instituição para as discussões sobre a violência no campo. Diversos operadores do Direito participavam e havia a pergunta inquietante “por que quase não há condenação nos casos do trabalho escravo”? Uns diziam “não há condenação pela ausência de uma definição clara sobre o que se fala”. E defendiam um novo texto para o art. 149. Outros ponderavam que não, “se houvesse uma definição, dificultaria as acusações e a emissão de sentenças condenatórias”. Finalmente, foi aprovada a mudança do texto. E a mudança considera o trabalho análogo ao de escravo existente, não apenas nos casos onde há retenção de liberdade e violência física. A retenção da liberdade e a violência física não são o núcleo central da escravidão e remonta ao conceito mais tradicional de escravidão que se encontra na dignidade humana ofendida. Tratar o outro como coisa, objeto, como se fosse uma mercadoria, mesmo que não se tenha nota fiscal, recibo, lembrando de Kevin Bales (2000). Então, o texto era fruto dos debates realizados na sede da Procuradoria--Geral da República. Houve a preocupação de inserir na redação do texto não a conjunção aditiva “e”, mas a alternativa “ou”, de tal forma que bastava haver um daqueles elementos para que o crime se configurasse. Fazem parte hoje da noção de trabalho escravo o trabalho degradante e o trabalho exaustivo. Houve novas mudanças. Foi aprovado o Projeto de Emenda Constitucional (PEC) do trabalho escravo em 2014 e, desta forma, ficou previsto por lei que aquele que utilizar mão de obra escrava, perde a propriedade6.

Mais recentemente, parlamentares começaram a rediscutir o conceito e se propuseram a alterar novamente o art. 149. Defendem que só se dá o crime quando há restrição à liberdade e ou violência. Então sairiam do texto o trabalho degradante e o trabalho exaustivo como elementos que também...

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