O Papel da Ordem dos Advogados na Luta pela Erradição da Escravidão Moderna

AutorDaniel Dias de Moura
Páginas46-51

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Daniel Dias de Moura 1

A Ordem dos Advogados do Brasil tem como um de seus deveres institucionais o combate às violações de direitos humanos e das garantias constitucionais, podendo, para isso, agir em nome da sociedade civil como um todo. Assim, atenta a proposição da ONU, que decretou a década da afrodecendência no mundo2, no ano de 2015 instituiu, no âmbito do Conselho Federal e, também, em nível dos Conselhos estaduais, as comissões da verdade da escravidão negra no Brasil, cujo objetivo é produzir provas materiais dos crimes cometidos contra as pessoas negras no Brasil durante o período da escravidão colonial e imperial no Brasil.

A partir do ano de 2016, foi ampliado o papel da comissão que passou a atuar, também, no combate ao trabalho escravo contemporâneo sob a denominação de Comissão da Verdade da Escravidão Negra e de Combate ao Trabalho Escravo no Brasil – CEVENB/MG. Essa ampliação decorre do entendimento de que o combate à escravidão moderna – que escraviza a todos independentemente da cor da pele – passa por contar a ver-dade da escravidão do povo negro no Brasil, enquanto instrumento de conscientização da sociedade de que a essência e o modus operandi do perverso e nefasto regime escravagista no Brasil se mantêm até os dias atuais.

Assim, a comissão passou a atuar focada em dois objetivos básicos: o primeiro visa contar a verdade histórica da escravidão clássica ocorrida no nosso país nos períodos colonial e imperial, mostrando os males causados à sociedade brasileira; o segundo é atuar no combate ao trabalho escravo contemporâneo, na verdade, “escravidão moderna”. No primeiro objetivo, a Comissão atua na produção de provas materiais e documentais dos crimes referentes à escravidão de pessoas negras no

Brasil, visando esclarecer as distorções e omissões na historiografia brasileira, que geraram e geram tantos males até os dias atuais, visando fundamentar eventuais pleitos de reparação aos danos causados à população negra do nosso país. Em relação ao segundo objetivo, em vista das evidências de reprodução nas relações trabalhistas atuais do modo de exploração escravagista do Brasil Colonial e Imperial, a atuação principal é no sentido de educar as gerações presentes e futuras sobre as causas, as consequências e as lições da escravidão, como meio de erradicação dessa forma nefasta e cruel de exploração do trabalho humano, agora não só em relação ao negro e africano.

Contar a verdade sobre os crimes praticados contra os escravizados nos séculos passados e ressaltar as lutas do povo negro por liberdade no curso da história do Brasil – no contexto do combate ao trabalho escravo contemporâneo – é conscientizar a sociedade acerca dos males da escravidão e dar instrumento às atuais vítimas desse sistema de escravização moderna de que existe um caminho para a liberdade. É, também, um meio de conscientizar a sociedade do quanto que a exploração do trabalho escravo é nefasta e continua sendo a mesma escravização que fora praticada pelos senhores de engenho nos últimos cinco séculos no Brasil.

Diariamente nos deparamos com pessoas que se surpreendem e se indignam ao saber que a verdadeira história acerca do regime escravagista no Brasil – incluindo as lutas do povo negro contra o sistema e suas realizações – não é contada nas nossas escolas e nas nossas faculdades. Por seu turno, o Estado se encarregou de ocultar e omitir as provas materiais dos crimes de lesa-humanidade dos quais foram vítimas os negros

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traficados do continente africano, apresentando para a sociedade uma historiografia distorcida, manipulada e dissimulada.

Aliás, o caráter dissimulado na formação da socie-dade brasileira é uma marca que a acompanha desde a sua origem. Através da análise dos fatos históricos, é possível concluir que, desde a invasão portuguesa, a nossa história não corresponde aos fatos. A nossa formação social foi baseada na dissimulação, na violência e na inobservância às normas e aos princípios já existentes à época do início da colonização no Brasil, conforme se pode extrair de importantes literaturas sobre o tema.

Analisando a obra de Thales Guaracy3, verifica-se que, ao contrário do que aprendemos nas escolas, a invasão portuguesa ao território brasileiro foi fortemente resistida pelas diversas tribos indígenas que já tinham a sua organização social e cultural. Essa resistência se deu através de um forte exército indígena confederado, com ramificação em todo o país. Na época, os invasores portugueses considerando a Guerra perdida, enviaram os padres Anchieta e Manoel da Nóbrega para um tratado de paz e assim salvar o que havia sobrado. Após muitas conferências, chegou ao que a história chama de “Acordo de Ipiroig”. Para os índios, um Acordo de Paz, porém, para os portugueses, uma dissimulação de paz apenas para ganhar tempo e recuperarem-se das batalhas perdidas.

Reestabelecido o exército português, sob o comando de Mem de Sá e as bênçãos de São Sebastião, em 20 de janeiro de 1567, atacou os indígenas, cujo saldo, conta o Autor, são “...160 aldeias incendiadas, mil casas arruinadas pelas chamas devoradoras, campos assolados e suas riquezas passado tudo ao fio da espada”, homens, mulheres, idosos e crianças assassinados, caracterizando um verdadeiro genocídio.

A dissimulação e distorção dos fatos também vinham através da elaboração e aplicação das leis. O historiador Brasil Gerson4, tratando sobre as questões legislativas e judiciais relacionadas à escravidão no Império, retrata o desprezo e a manipulação das normas em favor dos escravizadores. Na obra de Gerson, fica claro que as leis eram elaboradas e executadas apenas para satisfazer o interesse da aristocracia. Exemplos dessas práticas podem ser vistos a partir – e não necessariamente – da criação da Lei Feijó de 1831, que ficou conhecida como a “Lei para inglês ver”, cujo objetivo era proibir o tráfico de africanos para o Brasil. Após essa lei, ao contrário do que estava escrito, o tráfico de escravos se intensificou no Brasil até a época em que foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, em 4 de setembro de 1850, quando se passou a combater, efetivamente, o tráfico de escravos para o Brasil, visando reconstituir a imagem do país no exterior.

Curiosamente, menos de quinze dias após a promulgação da Lei Eusébio de Queirós, em 18 de setembro de 1850, também foi aprovada a Lei de Terras, que além de impedir que os ex-escravos obtivessem a propriedade das terras já possuídas ou através da compra, previa subsídios do governo à vinda de colonos do exterior para serem contratados no país, desvalorizando ainda mais o trabalho dos negros e negras e oficializando os...

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