A quem cabe a escolha? Sobre a importância de distinguir os métodos alternativos de interpretação jurídica

AutorFábio Perin Shecaira
CargoCandidato ao título de Doutorado em Filosofia pela McMaster University
Páginas6-23
Direito, Estado e Sociedade n.36 p. 6 a 23 jan/jun 2010
“A quem cabe a escolha?” Sobre a
importância de distinguir os métodos
alternativos de interpretação jurídica
Fábio Perin Shecaira*
1. Introdução: regras e propósitos
Na parede de um restaurante, há um cartaz onde se lê: “É proibido fu-
mar”. Um freguês lê o cartaz, pondera e decide acender um incenso depois
de terminar a refeição. O gerente do restaurante se aproxima do freguês e
pede que apague o incenso. Perplexo (ou f‌ingindo perplexidade), o freguês
responde: “Não vou apagar. Seu cartaz não proíbe incensos!”. Surpreso
com a resposta, o gerente se cala. Depois de alguns minutos, os demais
fregueses do restaurante começam a se incomodar com o cheiro forte do
incenso e exigem que o gerente tome alguma atitude. A impressão original
de que o freguês tinha-lhe apresentado um argumento def‌initivo contra a
proibição do incenso é dissipada e o gerente retorna para dizer: “O cartaz só
fala em fumar, mas o seu incenso incomoda os fregueses da mesma maneira.
Apague-o, por favor,”. O freguês, cujo incenso a essa altura já estava quase
no f‌im, sente que não vale a pena discutir, paga a conta e deixa o restaurante.
A teoria contemporânea do direito oferece uma maneira esclarecedora
de explicar a história que acaba de ser narrada. As regras - isto é, as pres-
crições que são formalizadas em instrumentos como constituições, códi-
gos, atos administrativos, decisões judiciais e até mesmo em cartazes como
aquele do nosso restaurante hipotético – são concretizações de propósitos
* Candidato ao título de Doutorado em Filosof‌ia pela McMaste r University. Agradeço a Mateus Almeida,
Fernando Rodrig ues e Noel Struchiner a aj uda na revisão do artigo. E -mail: fabioshecaira@hotma il.com
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mais profundos e abstratos1. No nosso exemplo particular, é possível ar-
gumentar que a regra que proíbe fumar é uma concretização do propósito
mais profundo de impedir que os fregueses do restaurante sejam incomo-
dados pelo cheiro e pela fumaça produzidos por objetos como cigarros,
charutos etc. A questão é que a linguagem usada para concretizar tal pro-
pósito é necessariamente menos f‌lexível do que o próprio propósito que
ela pretende concretizar. Essa disparidade entre regra e propósito gera um
fenômeno interessante.
O caso do restaurante é um caso de regra “subinclusiva”. A linguagem
do cartaz não inclui incensos, mas não é implausível supor que esses ob-
jetos (considerado o propósito da regra) deveriam ser incluídos na classe
de objetos proibidos: incensos têm o mesmo potencial para incomodar
os não fumantes que os cigarros têm. Por outro lado, a regra em questão
também é potencialmente “sobreinclusiva”. Suponha que um dos fregue-
ses do restaurante use em seu cachimbo uma erva que, quando queimada,
produz uma fumaça incolor e inodora. Esse fumante em nada incomodaria
os demais fregueses, mas a linguagem do cartaz o proíbe de fumar mesmo
assim: nesse caso, inclui-se entre os objetos proibidos um objeto que não
deveria ser incluído de acordo com o propósito do cartaz.
Toda regra é potencialmente sub e sobreinclusiva. Esse é um fenômeno
que decorre do fato inevitável de que a linguagem e as categorias de que
ela se serve são rígidas demais para dar conta da complexidade e da f‌luidez
da experiência. Numa série de casos, o resultado decorrente da aplicação
da linguagem da regra será divergente do resultado que decorreria da apli-
cação do propósito que a regra pretende especif‌icar. Incensos incomodam?
Sim. Mas acender um incenso é uma instância do ato de “fumar”? Não.
É claro que o gerente do restaurante poderia substituir o cartaz por
um outro cuja linguagem seja mais apropriada para descrever aquilo que
ele acredita ser o propósito da regra que proíbe o fumo. Um bom candi-
dato seria: “É proibido queimar qualquer substância que produza fumaça
visível ou cheiro forte”. A nova regra passaria a incluir o incenso entre os
objetos proibidos e, ao mesmo tempo, deixaria de incluir ervas inofensivas
como aquela do fumante de cachimbo. Mas o mais importante é notar que
os benefícios decorrentes da reformulação seriam limitados. A nova regra,
pode-se argumentar, também tem um propósito subjacente: ela pretende
1 As bases dessa concepção de regra estão em SCHAUER, 1991, passim.
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