Que cabe ao jurista fazer? Notas sobre as relações de derivação e positivação no sistema do Direito

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Titular e Emérito da Faculdade de Direito da USP e da PUC/SP. Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofía.
Páginas7-19

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1. Introdução

Mais que mera presença de proposições descritivas de origens estranhas, a doutrina do direito tributário ostentou, durante considerável espaço de tempo, a confluência de métodos diversos, naquela "mancebia irregular" a que se referiu Alfredo Augusto Becker.1 E o resultado foi o que todos sabem: a falência, enquanto "conhecimento multidisciprinar", da nossa velha "Ciência das Finanças", que ousou ter a pretensão de relatar a atividade financeira do Estado sob todos os aspectos possíveis. Esta seria, como foi, tentativa vã de descrever o mesmo objeto segundo ângulos cognoscentes distintos: económico, histórico, antropológico, jurídico, ético e tantos mais, porquanto sabemos que a cada Ciência cabe um, e somente um método.

Como reação, a pretexto de repudiar o que não fosse estritamente jurídico, a comunidade científica acabou desprezando domínios importantes para a disciplina das condutas inter-humanas.

Antes de caracterizar-se como singela procura da originalidade, em certa medida providência necessária nas elaborações da Academia, o caráterexpansionista, em termos metodológicos, é o resultado da busca de novos modelos, de outras formas de expressão, de paradigmas diferentes dos usuais, no trato

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com o fenómeno do direito. Sobre a utilidade concreta dessas contribuições, como acréscimos efetivos no mundo da experiência, só o passar do tempo poderá dizer.

De uma coisa, porém, estou convencido: justificam-se plenamente sob o enfoque da pesquisa científica, da reflexão aprofundada, da investigação intelectual conduzida no âmbito desse padrão especulativo, de tal sorte que sua repercussão prática passe a ser mera questão circunstancial que as premências da vida algumas vezes antecipam, outras protelam.

Espera-se do cientista do direito que escolha as premissas, penetradas, é claro, pelos valores que compuserem sua ideologia, mantendo-se fiel aos pontos de partida, para elaborar um sistema descritivo consistente, dando a conhecer como se aproxima, vê e recolhe o objeto da investigação. Agora, as meditações que tal conhecimento venha a suscitar, em termos de reflexões ulteriores, serão matéria de outras conjecturas, tecidas pelo pensamento humano que não cessa, não se detém, porque a linguagem apta para falar do mundo é inesgotável.

Neste ponto, nutro uma convicção que me parece acertada: a expansão dos horizontes do saber do exegeta do direito positivado só será possível por meio de um método dogmático, restritivo do conteúdo da realidade semântica difusa, fundando este corte metodológico em premissas sólidas.

Nunca é demais lembrar que escrever "pensando", mediante corpo de asserções fundadas em premissas explícitas, dista de ser um trabalho fácil. Pelo contrário, é acontecimento inusual, sobretudo em face da doutrina dominante, com seu viés de tradição meramente expositiva, fincada em argumentos de autoridade, como garantia, quase que exclusiva, da procedência dos enunciados.

De uns anos para cá, no entanto, para benefício da comunidade jurídica, com o movimento do "giro-linguístico", e, posteriormente, do constructivismo lógico-semântico preconizado pelo mestre Lourival Vilanova, verifica-se uma grande tendência, porparte de alguns exegetas, em se aperfeiçoar a Teoria Geral do Direito fazendo uso de expedientes epistemológicos ricos em método, que visam a aprofundar o conhecimento da matéria. E neste movimento, obviamente, encontra-se envolvido também o direito tributário brasileiro.

O estudo do direito tributário, no Brasil, tem exibido invejável sentido de verticalidade. A circunstância da farta elaboração da matéria no altiplano da Constituição e a consciência de que o conhecimento do direito administrativo é imprescindível para a boa compreensão da sistemática tributária, tudo sustentado por uma base sólida de Teoria Geral, Lógica Jurídica e por sadias reflexões de Filosofia do Direito, enformaram uma doutrina que vem se distinguindo pela densidade e aprimoramento de suas elaborações, pela seriedade da pesquisa e pela produção de um coerente discurso científico. Óbvio que tais predicados não atingem a generalidade dos trabalhos, mas é traço bem característico em número razoável de escritos publicados nos últimos anos.

Diríamos que a primeira causa é de índole histórica, ensejada pelo modo minucioso segundo o qual o constituinte brasileiro estabeleceu o campo das possibilidades impositi-vas, obrigando o estudioso a ingressar no exame acurado da ordem constitucional, como pressuposto indeclinável do entendimento das instituições tributárias. Outras causas, porém, hão de ser creditadas à sensibilidade de nossos pesquisadores, que perceberam, oportunamente, a necessidade do controle na construção da linguagem científica no âmbito do direito, enfatizando a Teoria Geral e, para o coroamento da pesquisa, estimulando as meditações acerca da natureza do processo cognoscitivo e de suas projeções efectuais. Este último esforço, que retroverte sobre a própria construção do discurso, encontra limitações, mas, ao mesmo tempo, trava contato com suas virtudes e potencialidades.

No domínio das chamadas "Ciências Sociais", a postura axiológica do ser cog-noscente é pressuposta, já que, sem valor, que é o sentido específico do homem e da

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sua liberdade, ele mesmo não existe como tal e não há como falar-se em cultura. A polaridade se estabelece em termos diferentes. Há cabimento de enunciados de outras ciências na linguagem da dogmática, desde que não interfiram naquilo que conhecemos por "modelo do raciocínio da Ciência do Direito em sentido estrito".

Interessante exemplo de como os sistemas próprios de outras ciências são trazidos à linguagem jurídica é citado por Aires Barreto,2 ao tratar das alíquotas:

"(...) o Direito positivo estampa um dos termos ensejadores do cálculo da dívida tributária através de percentagem, isto é, da parte proporcional calculada sobre uma quantidade de cem unidades."

Ora, recolhendo em si componentes de sistemas matemáticos, não pode prescindir da aceitação de todas as regras, preceitos, dos princípios enfim a que se subordinam.

Vale dizer, o autor pode, perfeitamente, enriquecer seu discurso descritivo com orações estranhas, desde que o faça a título de observações marginais. Torna-se possível, então, trasladar sentenças da Matemática, Economia, da Ciência Política, da Sociologia, da História, da Antropologia, dentre outras áreas do conhecimento científico, para ajudar no esclarecimento indicativo, servindo de contraste, de pano de fundo, mas nunca para fundamentar o modo de ser peculiar do pensamento jurídico. Tudo isso, sem falar da necessidade que o teórico tem de sair do âmbito do conhecimento especializado, para examinar a natureza de seu trabalho, inspe-cionando a técnica da construção científica, a fim de arramar organicamente o material da investigação, que é o campo próprio da metodologia jurídica.

Foi com esta preocupação em "escrever bem e pensando" que o constructivismo lógico-semântico tomou força em toda comunidade científica. Abusca incessante de se aperfeiçoar a Teoria Geral, com o objetivo de aprofundar o conhecimento da matéria, tornou-se a base do movimento que introduziu, no campo epistemológico do direito, mudanças ideológicas relevantes. Transportando-se este panorama para o quadro das inovações teóricas do movimento, breve investigação nos demonstrará o enorme passo dado pela Ciência do Direito.

2. O "giro-linguístico" e a desconstrução da verdade absoluta

Atravessamos o tempo do "giro-linguístico", concepção do mundo que progride, a velas pandas, seja nas declarações estridentes de seus adeptos mais fervorosos, quer no remo surdo das construções implícitas dos autores contemporâneos. A cada dia, com o cruzamento vertiginoso das comunicações, aquilo que fora tido como "verdade" dissolve--se num abrir e fechar de olhos, como se nunca tivesse existido, e emerge nova teoria para proclamar, em alto e bom som, também em nome da "verdade", o novo estado de coisas que o saber científico anuncia.

Em exemplo recentíssimo, temos Plutão, "o nono planeta", que acaba de ser inapelavelmente desqualificado pelos "avanços" da Astronomia. Pequena substituição na camada de linguagem que outorgava àquela esfera celeste a condição de planeta foi o suficiente para desclassificá-lo, oferecendo à comunidade das Ciências outro panorama do nosso sistema solar. Mas é curioso perceber que enquanto isso, indiferente às linguagens que nós produzimos sobre ele, Plutão continua cumprindo sua trajetória, como se nada houvesse acontecido.

Quando Nietzsche asseverou que a Ciência aspirava ao saber sem ater-se a suas eventuais consequências, já antevia modificações como essa, que estendem sobre nós o manto do ceticismo, porém não impedem o progresso do conhecimento e a marcha inexorável da pesquisa, levantando apenas novas conjecturas que proporcionam outras refutações, para lembrar Popper.

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As conquistas do "giro" fazem sentir-se em todos os quadrantes da existência humana. Ali onde houver o fenómeno do conhecimento, estarão interessados, como fatores essenciais, o sujeito, o objeto e a possibilidade de o sujeito captar, ainda que a seu modo, a realidade desse objeto.

Reflexões desse género conduziram o pensamento a uma desconstrução da verdade objetiva e a correspondente tomada de consciência dos limites intrínsecos do ser humano, com a subsequente ruína do modelo científico representado por métodos aplicáveis aos múltiplos setores da experiência física e social. Plantado no princípio da...

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