CALO DA MEMÓRIA: flashback em Batismo de Sangue/CALLUS OF MEMORY: flashback in Batismo de Sangue.

Autorde Souza Lima, Giovanna Faciola Brandão

1 introdução

Em 17 de abril de 2016, durante a votação na Câmara dos Deputados acerca da autorização do seguimento do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o à época deputado federal, Jair Bolsonaro, ao proferir seu voto favorável, dedicou-o à memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, "o pavor de Dilma!", responsável por ter comandado as sessões de tortura praticadas contra a ex-presidenta durante a Ditadura Civil-Militar de 1964. Em 28 de dezembro de 2020, em meio ao caos da crise sanitária do novo coronavírus e as dificuldades que o Brasil tem passado no enfrentamento da pandemia, o agora Presidente Jair Bolsonaro, em conversa com seus apoiadores, questionou e ironizou a veracidade dos relatos da ex-presidenta a respeito das torturas que sofreu durante o regime militar e afirmou estar até hoje "aguardando o raio-x" de Dilma para verificar "o calo ósseo" ali presente de modo a confirmar se efetivamente a sua mandíbula havia sido fraturada durante o período de exceção.

O lapso temporal entre as duas falas se conecta com as modificações políticas, econômicas e sociais no país e a ascensão da extrema-direita ao poder, tendo como expoente o atual presidente que não esconde a sua admiração pela Ditadura Civil-Militar, a tortura e os ideais autoritários. Ao mesmo tempo, tem se tornado constante nas falas de Bolsonaro, dos membros de seu governo e demais apoiadores, o questionamento da história do regime militar que o Brasil vivenciou, bem como o uso de um tom negacionista do que efetivamente foi a ditadura, de suas consequências, das torturas, perseguições, desaparecimentos e o trauma daqueles que sobreviveram ao período. Essa estratégia não é nova.

O que essas situações têm em comum é o questionamento das memórias pessoais e políticas do tempo da Ditadura Civil-Militar brasileira, que durou 21 anos, de 1964 a 1985. Bolsonaro, ao confrontar a veracidade dos relatos de Dilma, afronta a figura do trauma, questiona sua memória, e sua realidade. Assim, lembrando também que trauma é sinônimo de "fratura", o presente artigo se propõe a refletir tais questões a partir do filme brasileiro Batismo de Sangue (2007). O filme foi dirigido por Helvécio Ratton e é baseado no livro de mesmo nome, escrito por Frei Betto. Na obra originalmente publicada em 1982, 23 anos antes do filme homônimo, Betto relata as memórias e os traumas das barbaridades cometidas durante a ditadura brasileira, dentre eles, o episódio paradigmático da perseguição aos frades dominicanos, quando estiveram associados ao grupo guerrilheiro Aliança Libertadora Nacional, sob a liderança do comunista brasileiro Carlos Marighella.

Especificamente, o trabalho tratará da problemática em torno da memória da Ditadura Civil-Militar e das frequentes tentativas de apagamento e negação dela, nas formas como o filme a problematiza, isto é, a partir do recurso do flashback das memórias de tortura de Frei Tito, utilizado na produção como mecanismo narrativo do trauma, na tentativa de fazer com que os telespectadores se conectem com essa experiência. Para isso, desenvolveremos duas hipóteses: primeiramente, de que o lembrar ativo do que foi o período militar no Brasil é importante não apenas para a compreensão do presente político, mas porque a memória histórica de uma experiência coletiva sob a exceção é capaz de emancipar aquelas e aqueles que vivem no presente. Em segundo lugar, de que o modo como o filme selecionado e o recurso do flashback empregado nele funcionam como a ideia de testemunho desenvolvida pelo filósofo Giorgio Agamben, em sua obra O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (2008), enquanto uma ética que faz ressoar a história daqueles que predominantemente foram, e são, silenciados.

Nesse sentido, seguindo aquilo que Gagnebin (2006, p. 47) diz, as preocupações com a verdade do passado se complementam com a necessidade de um presente que seja também verdadeiro, e se trata de uma tarefa política, pois lutar contra o esquecimento e a negação é lutar para impedir que o horror se repita. Desse modo, trataremos sobre o que restou do passado ditatorial na atualidade, o contexto político de produção do filme e a forma que ele se propõe a narrar uma história desse período pelo ponto de vista dos frades dominicanos torturados, especificamente, Frei Tito.

Assim, trata-se de pesquisa bibliográfica que se utilizará do enredo do filme e da interpretação em torno do recurso cinematográfico flashback em cotejamento com o referencial teórico, de modo que o artigo está estruturado, além dessa introdução, em mais três itens. O próximo (2) faz uma breve contextualização histórica da Ditadura Civil-Militar no Brasil e sua constante relação com o presente político do país. O tópico seguinte (3) desenvolve o enredo do filme Batismo de Sangue, seu contexto de produção, direção e a descrição das cenas que utilizam o recurso do flashback. Em seguida, em item próprio (4), trataremos sobre o que é o recurso cinematográfico do flashback (4.1) e como ele é utilizado no filme. Por fim, desenvolvemos a análise do recurso cinematográfico e do filme a partir da ideia de testemunho e ética testemunhal pertencente à teoria filosófica de Agamben (4.2) e, no último item (5), formularemos nossas conclusões.

2 A memória da ditadura: um passado não reconciliado

Apesar do lapso temporal de pouco mais de cinquenta anos entre o presente republicano brasileiro e o seu passado ditatorial, é evidente aos cidadãos brasileiros, e aos observadores da política do país, que o amargor dos anos da Ditadura Civil-Militar não ficou no passado da história nacional, elaborado e superado. Ao contrário, os anos tortuosos e obscuros em que os militares tomaram o poder para si demonstram, diariamente, "[...] a sua incrível capacidade de não passar" (SAFATLE; TELES, 2010, p. 09). Seja pela herança da estrutura de violência sistêmica ou dos traumas sociais que até hoje esse período histórico promove em nosso cotidiano, a ligação direta da vivência política brasileira ainda é permeada pelo passado recente do regime militar.

Tal afirmação se torna ainda mais evidenciada se observarmos que, durante a maior crise sanitária do século, a pandemia da COVID-19, uma parcela da população brasileira que apoia o atual governo federal, foi às ruas, no dia 01 de maio deste ano, promover manifestações de apoio ao Presidente Jair Bolsonaro, reivindicando "intervenção militar", "fechamento do STF" e "volta do AI-5". O flerte do atual presidente do país com a Ditadura Civil-Militar é uma constante política que antecede a sua ascensão à presidência do país e, em verdade, é algo que nunca ficou às escondidas.

Entretanto, antes de pontuarmos o atual mal-estar político em torno do passado ditatorial precisamos, primeiro, contextualizar historicamente a conjuntura política brasileira a partir do golpe civil-militar de 1964. No dia primeiro de abril deste ano, os militares derrubaram o governo do então presidente eleito, João Goulart, e suspenderam o regime democrático estabelecido a partir de 1945. Os militares justificaram essa escalada autoritária e antidemocrática ao poder como necessária para a garantia da ordem e da segurança nacional, uma medida temporária, mas indispensável para salvar o Brasil da corrupção e impedir o avanço comunista no país, como se pode verificar no preâmbulo do Ato Institucional no 01, de 1964 (BRASIL, 1964).

À medida que os anos passavam, a forma como eles governavam o país ia, aos poucos, se tornando ainda mais autoritária, e assim perdurou por vinte e um anos. Por meio da institucionalização de práticas de tortura daqueles que eram contrários ao regime, a perseguição a grupos específicos de opositores, as prisões arbitrárias e a censura aos críticos do regime, esse período da história brasileira ficou marcado pelas graves violações de direitos humanos e supressão de direitos políticos dos cidadãos brasileiros.

Esse contexto fica muito bem representado no filme Batismo de Sangue, que tentou reproduzir e tornar inteligível àqueles que não viveram durante esse período como foi a realidade daqueles que se opuseram à Ditadura Civil-Militar e que, por tal escolha política, sofreram perseguições e torturas. Além disso, o filme coloca em evidência os efeitos psicológicos de se ter vivido uma experiência como essa, o trauma que permanece e acompanha aqueles que foram submetidos a tamanha violência, como é a vida de Frei Tito, apresentada no enredo. Esse trauma, como um calo ou uma cicatriz, persiste enquanto uma marca da experiência na memória viva dos que sobreviveram e, como um flashback, se manifesta no presente.

A partir de 1975, a situação política no país foi se tornando ainda mais instável, familiares de presos políticos, desaparecidos e exilados, juntamente com defensores dos direitos humanos e outros grupos de movimentos sociais se uniram em prol da reivindicação da anistia ampla, geral e irrestrita. Em 1979, influenciados por tais reivindicações e, também, por estarem cientes de que o apoio ao regime militar estava diminuindo, os militares começaram a se preparar para a transição futura da ditadura a um regime democrático. Com isso, o à época presidente, João Figueiredo, promulgou a Lei de Anistia no 6.683/79 que concedeu anistia a todos aqueles que cometeram crimes políticos ou conexos.

Aqueles que se mobilizaram na luta pela anistia pensavam essa conquista, como afirma a historiadora Heloisa Greco, enquanto um instrumento que possibilitaria o "resgate da memória e direito à verdade: reparação histórica, luta contra o esquecimento e recuperação das lembranças" (GRECO, 2005, p. 90). Em contrapartida, os militares viam na anistia um objetivo diverso. Para eles, ela seria um instrumento que possibilitaria o esquecimento de certas narrativas e atos do passado, um pacto de silêncio legalmente estabelecido e sancionado. Como afirma Greco, na concepção dos membros da ditadura, a anistia era vislumbrada como "esquecimento e pacificação: conciliação nacional...

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