Campos de Concentração para Homens Gays na Chechênia: fronteiras físicas e a sociedade global digital

AutorFabrício Bertini Pasquot Polido/Márcia Carolina Santos Trivellato
Ocupação do AutorProfessor Associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Advogada
Páginas298-323
298 • CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO : CAPÍTULO 11
CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO PARA HOMENS
GAYS NA CHECHÊNIA: FRONTEIRAS FÍSICAS
E A SOCIEDADE GLOBAL DIGITAL
Fabrício Bertini Pasquot Polido1
Márcia Carol ina Santos Trivell ato2
Sumário: Introdução 1. A construção de uma sociedade cosmo-
polita versus o uso dos corpos na biopolítica. 2. Campos de concen-
tração: fronteiras excepcionais como normalidade desumanizadora
na sociedade contemporânea. 3. Fronteiras digitais e a realidade
exposta por trás dos muros e dos regimes antidemocráticos. Con-
clusão. Referências.
Introdução
Em abril de 2017, a comunidade internacional deu conta da
existência e manutenção de campos de concentração para homens
gays na Chechênia, região da Federação Russa, em mais um episódio
da onda de crescente perseguição e violência contra pessoas LGBTQ
no globo3. Graças à matéria publicada na internet pela jornalista Ele-
na Milashina da Novaya Gazeta, foi possível conhecer relatos sobre
a violência física, psicológica e a morte de mais de 100 moradores
daquela região (NOVAYA GAZETA, 2017; idem 2020; BBC BRASIL,
2017). Tratados também como ocorridos em ‘prisões’ ou ‘instala-
ções’ secretas, os eventos foram sendo negados pelo governo cheche-
no, tanto na capital Groznym como na cidade de Argún, que teria
1 Professor Associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da Universida-
de Federal de Minas Gerais - UFMG. Professor do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e do Programa
em Inovação Tecnológica da UFMG. Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo-USP. Coordenador do
Centro de Estudos Jurídicos Transnacionais e Comparados da UFMG. E-mail: fpolido@ufmg.br.
2 Advogada. Doutoranda em Direito na Universiade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Direito pela Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Pesquisadora no Centro de Estudos Jurídicos Transnacionais e Comparados da UFMG. E-mail: mar-
ciacstrivellato@gmail.com.
3 Empregamos aqui a sigla para denir, no conjunto, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros e intersexuais que cons-
tituem a comunidade de pessoas com orientação sexual e identidade de gênero diversas e não conformativas com a heterossexu-
alidade/cisgêneros e internacionalmente consideradas pertencentes a minorias.
FABRÍCIO BERTINI PASQUOT POLIDO & MÁRCIA CAROLINA SANTOS TRIVELLATO •299
sido a primeira localidade em que pessoas LGBTQ estavam sendo
presas, espancadas, torturadas e assassinadas.
Em termos geopolíticos, a região da Chechênia é marcada
por conitos desde a sua formação. Inicialmente, as disputas eram
constituídas por cristãos versus muçulmanos, tendo em vista a loca-
lização do território entre o Oriente Médio e a Rússia. Muito embora
a população majoritária fosse russa ou descendente desta origem,
o país se converteu ao islamismo por volta do século XVIII. Esta
questão desencadeou uma série de conitos entre a Rússia e a Che-
chênia, bem como diversas ondas separatistas e declarações de in-
dependência em diversas ocasiões. Nelas o governo russo mantinha
estratégia militar, política e econômica voltada para outros assuntos,
como entre os anos de 1919-1921, 1939-1945 e 1991 A declaração
de independência em 1991 teve como principal consequência o
envio de soldados russos pelo ex-Presidente Boris Iéltsin, fato que
desencadeou a Primeira Guerra da Chechênia. Apesar de este con-
ito armado ter sido nalizado com um tratado de paz entre os dois
países, em 1999 foi deagrada a Segunda Guerra da Chechênia em
favor de sua independência. Países como Estados Unidos da Améri-
ca (EUA), Arábia Saudita, Paquistão e Geórgia, por exemplo, apoiam
o cessar-fogo e a independência chechena. Todavia, ainda em 2020, a
Rússia e os organismos internacionais, como a Organização das Na-
ções Unidas (ONU), continuam sem reconhecê-la (PODRABINEK,
2014; BBC, 2002).
Em meio a estes aspectos, há um fator político-religioso de
extrema importância e que formalmente explica, em parte, a perse-
guição sofrida por pessoas LGBTQ na região. De um lado, a educa-
ção religiosa majoritária dos integrantes da população da Chechênia
é muçulmana, e segundo a tradição cáucasa, apenas o casamento
realizado entre homens e mulheres é considerado legítimo. De outro
lado, leis russas consideram crime de honra a orientação sexual não-
-tradicional, conforme é denominada na região. Para “lavar a ver-
gonha”, as autoridades da região e mesmo familiares desrespeitam e
punem com violência os relacionamentos que não se caracterizam
de acordo com o padrão cisheteronormativo (VAN DEURSEN,
2017). Em 2013, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sancionou
uma lei que proíbe expressões públicas em defesa da comunidade
LGBTQ, conhecida como ‘Anti-Gay Propaganda Law’ (DE KERF,
2017, p.35; EL PAÍS, 2019). Além de proibir manifestações públicas

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT