A capacidade nas democracias contemporâneas: fundamento axiológico da Convenção de Nova York

AutorNatércia Siqueira
Ocupação do AutorMestre em Direito (UFMG). Doutora em Direito Constitucional (UNIFOR). Professora do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito Constitucional da Unifor. Procuradora do Município de Fortaleza
Páginas47-66
A capacidade nas democracias contemporâneas:
fundamento axiológico da Convenção
de Nova York
Natercia Sampaio Siqueira*
1. Introdução
A Convenção de Nova York de 2007, ratificada pelo Estado brasileiro,
revela-se como importante instrumento de política social, com impacto nos
mais importantes institutos pelos quais se organiza uma sociedade: política,
economia, educação, saúde, família. Pelo presente instrumento, os Estados
se comprometem não apenas a criar estrutura de acessibilidade, como tam-
bém a combater a discriminação, de maneira a possibilitar ao deficiente de-
senvolver-se em suas aptidões.
Posteriormente à convenção, o Brasil publicou a Lei 13.146/2015, que
trata da inclusão das pessoas portadoras de deficiência. Diante do referido
panorama normativo, pretende-se perquirir sobre o elemento axiológico
que estaria a inspirá-lo, mediante os seguintes questionamentos: há critério
específico de justiça que tenha informado a elaboração da Convenção de
Nova York e da Lei 13.146/15? Qual? O que ele implica? Tais questiona-
mentos, ainda importa advertir, são relevantes tanto porque permitem de-
limitar com precisão o objeto e alcance das normas que tratam da inclusão
das pessoas portadoras de deficiência, como informar às claras o critério de
justiça que estaria a inspirar a adoção das políticas públicas brasileiras, de
maneira a conhecê-lo, publicizá-lo e trazê-lo ao debate democrático.
Para tanto, mediante revisão bibliográfica, faz-se uma breve abordagem
das várias concepções que se construíram para o homem no decorrer da
história do pensamento ocidental, para ao final se fixar no período contem-
porâneo. Por este momento, aborda-se a concepção que atualmente a cul-
* Mestre em Direito (UFMG). Doutora em Direito Constitucional (UNIFOR). Pro-
fessora do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito Constitu-
cional da Unifor. Procuradora do Município de Fortaleza.
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tura pública democrática tem sobre o homem, que na esteira do pensamen-
to liberal incorporaria o que se pode chamar do “estilo afetivo freudiano”.
O homem, é a conclusão a que se chegou, se justificaria no exercício da
liberdade, que se deve compreender como a faculdade para construir, viver
e realizar o projeto de vida que lhe seja pertinente. Por via de consequência,
referida concepção passou a ser o principal objetivo do Estado que, para
tanto, não apenas deve abster-se de intervir no exercício dessa faculdade,
como possibilitar que referida faculdade possa ser efetivamente desenvol-
vida.
Trabalha-se essa relação entre abstenção e intervenção para chegar-se ao
conceito de capacidade, que implica, essencialmente, o entendimento da
liberdade como a efetiva aptidão da pessoa para exercer a faculdade de se
desenvolver e realizar autenticamente; ou seja, em conformidade ao que
valoriza. Está-se, pois, no momento de confrontar a “capacidade” ao texto
da Convenção de Nova York e da Lei 13.146/15, quando se chega à conclu-
são de que a “capacidade” é o parâmetro de justiça que inspirou a realização
de ambas: pela perspectiva da “capacidade” se deve compreender e delimi-
tar o alcance da política de inserção da pessoa portadora de deficiência.
2. Os diferentes parâmetros para se compreender o homem
Diferentes foram os parâmetros pelos quais o homem pensou em si no
desenrolar da história.
Na Grécia, por exemplo, o homem pensava em si não como ser cuja
finalidade última era a si e cuja dignidade residia na liberdade. Antes, o
homem era compreendido mediante perspectiva teleológica: a virtude im-
plicava a sua perfeita realização, que ocorria na dinâmica de participação,
sujeição e dedicação ao público:
A democracia ateniense foi marcada por um compromisso geral com o prin-
cípio da virtude cívica: dedicação à cidade-estado republicana e subordina-
ção da vida privada aos assuntos públicos e ao bem comum. O ‘público’ e o
‘privado’ estavam interligados, embora, como Péricles observou, a tolerân-
cia era essencial para que as pessoas pudessem gozar da vida ‘à sua própria
maneira’. Mas a antiga visão grega tendia a adotar a posição de que ‘a virtu-
de do indivíduo é a mesma que a virtude do cidadão’ (jaeger, citado em
Lee, 1974, p. 32). Os seres humanos só poderiam se realizar adequadamen-
te e viver honradamente como cidadãos na e por meio da polis, pois a ética
e a política estavam fundidos na vida da comunidade política. Nesta comu-
nidade, o cidadão tinha direitos e obrigações; mas estes direitos não eram
atributos de indivíduos privados e estas obrigações não eram forçadas por
um estado dedicado à manutenção de uma estrutura que visava proteger os
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