O princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988 e sua aplicação à luz da Convenção Internacional e do Estatuto da Pessoa com Deficiência

AutorGabrielle Bezerra Sales e Ingo Wolfgang Sarlet
Ocupação do AutorAdvogada. Graduada e mestre em Direito pela UFC ? Universidade Federal do Ceará/Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha
Páginas131-159
O princípio da igualdade na Constituição Federal
de 1988 e sua aplicação à luz da Convenção
Internacional e do Estatuto da Pessoas com
Deficiência*
Gabrielle Bezerra Sales**
Ingo Wolfgang Sarlet***
1. Introdução
De modo geral, nas investigações sobre deficiência é perceptível certo
desconforto com relação ao tema, sobretudo porque se trata de modalida-
des de corpos e de estruturas mentais que escapam do suposto padrão de
perfeição e de normalidade. Com efeito, é possível reconhecer que mesmo
na contemporaneidade ainda se afirma, de forma ideologizada, a existência
de uma concepção de saúde ideal que intenta, em última instância, o enges-
samento da natureza, da mente e do corpo humano em um único, estático e
irredutível, molde.
Trata-se, de fato, de uma das mais relevantes e perversas utopias da
civilização ocidental, na medida em que da atual crença desmedida no po-
der da ciência, notadamente no uso desenvolvimentista da biotecnologia, se
projetam as possiblidades de cura, de reparo, de adestramento e, sobretu-
do, de purificação de todos os homens e do próprio planeta, em uma espécie
de promessa de mítico retorno ao paraíso original.
* Cuida-se de texto em parte (aqui objeto de atualização, ampliação e recontextua-
lização) publicado na obra coletiva coordenada por Carolina Valença Ferraz, George
Salomão Leite, Glauber Salomão Leite e Glauco Salomão Leite, Manual das Pessoas
com Deficiência, São Paulo: Saraiva, 2012.
** Advogada. Graduada e mestre em Direito pela UFC – Universidade Federal do
Ceará. Doutora em Direito pela Universidade de Augsburg, Alemanha. Professora e
Coordenadora Geral do Curso de Direito da Unichristus – Ceará.
*** Doutor e Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Pro-
fessor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em
Dir eit o e em Ciên cia s Cri mina is d a PUC RS, P rofe sso r da E scol a Su peri or da Magi str a-
tura do RS (AJURIS), Juiz de Direi to no RS.
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O corpo, nesse sentido, é, em síntese, uma das entidades mais ambí-
guas, cuja apreciação oscila entre o fascínio e a repulsa, entre a hostilidade
e a indiferença, ao longo do percurso da História ocidental. Para melhor
compreendê-lo, independentemente da sua condição, deve-se alinhavar a
perspectiva histórica, vez que analisá-lo pressupõe a tentativa de compreen-
são do Homem cotidiano, circunstanciado, dentre outras, pelas medidas de
igualdade, de estigma, de inclusão e de discriminação que formatam a sua
esfera de atuação existencial. Infere-se, dai, que deficiência e pessoa se tor-
nam noções indissociáveis, vez que se encontram imbrincadas em um ema-
ranhado que alinha tanto os corpos quanto a sua estruturação psíquica, isto
é, a tutela da pessoa não pode se contentar com soluções abstratas, superfi-
ciais e nem tampouco ideologizadas.
A deficiência é, geralmente, apontada como um traço característico de
minorias, o que prenuncia uma espécie de exclusão. No entanto, alinhar a
ideia de deficiência à minoria pura e simplesmente é, no mínimo, desconhe-
cer que os números apontam em sentido oposto1 e que qualquer afirmação
no sentido paternalista ou assistencialista deve ser rechaçada de pronto.
Ademais, o que se busca ao retratar os desafios impostos à sociedade no que
tange à plena inclusão, é que a deficiência se trata de uma espécie de traço
identitário, não podendo servir de justificativa para nenhum tipo de discri-
minação, exceto as de natureza positiva (das assim chamadas ações afirma-
tivas), que, ademais, são inclusive objeto de exigência constitucional e do
próprio direito internacional dos direitos humanos.
De fato, a deficiência de algumas pessoas humanas, independentemente
de sua natureza, implica em uma análise que retire as brumas do preconceito
e traga a necessidade de se refletir lúcida, responsável e solidariamente tanto
acerca dos limites e da abrangência do corpo quanto da mente, consolidando
a tutela integral que contrarie e ofereça alternativas à padronização social.
Para compreender a exclusão sofrida pela pessoa com deficiência e,
principalmente, tentar esboçar uma ideia inclusiva, urge portanto adensar o
foco em um feixe global de representações que englobem o sistema jurídi-
co, sem se restringir a ele, muito embora a abordagem transdisciplinar não
faça parte desse estudo. Para tanto, esse trabalho consiste em uma análise
preliminar das formas de tutela da pessoa com deficiência no Brasil e tem
como objetivo precípuo, a partir do diálogo com a dogmática jurídica, apre-
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1 Os resultados do Censo demográfico de 2010 indicam que 23,9% da população
brasileira tem algum tipo de deficiência, ou seja, 45.606048 milhoes de pessoas decla-
raram ter pelo menos uma das deficiências investigadas . Dentre as regiões, o nordeste
brasileiro concentra os municípios com maiores percentuais dessa parcela da popula-
çâo. In: “http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_
deficiencia.pdf” (consulta em 19.05.2016)

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