Capítulo I - O Reexame das Decisões Judiciais ao Longo dos Tempos

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Sistema dos Recursos Trabalhistas
Capítulo I — O Reexame das Decisões
Judiciais ao Longo dos Tempos
1. Escorço histórico
A aptidão para formular juízos de valor a respeito das coisas do mundo sensível em
geral constitui, sem dúvida, um dos mais signicativos predicados da racionalidade humana;
daí por que o notável lósofo René Descartes — fundador do moderno racionalismo (penso,
logo existo) — pôde armar, com inegável acerto, que “o poder de bem julgar e de distinguir
o verdadeiro do falso, que é propriamente o que se denomina o bom senso ou a razão, é igual,
por natureza, em todos os homens” (“Discurso sobre o Método”, trad. de Paulo M. Oliveira,
Rio de Janeiro, Editora Athena, sem d ata, p. 9).
Esse atributo, todavia, adquire extraordinária importância quando, ajustado à óptica do
ordenamento jurídico em vigor, é utilizado na apreciação dos próprios atos humanos, ou dos
fatos da vida em sociedade — pois se sabe que o homem, a partir de certo momento de sua
história, tornou-se julgador dos seus semelhantes, na ordem terrena, seja para reconhecer-
-lhes a existência de um direito; seja para compeli-los a respeitar a esfera jurídica alheia, seja
para o que mais fosse necessário ou conveniente.
Pode-se sustentar, por isso, que o homem, a par de reconhecidamente gregário, é também
um ente capaz de julgar.
As fontes revelam, a propósito, que no curso da História a gura do julgador precedeu, em
muito, à do legislador; com efeito, o ofício de julgar, bem antes da existência da judicatura
de natureza institucional, foi cometido aos sacerdotes (cujas decisões supunham-se consoantes
com o desejo das divindades) ou aos anciãos (que eram, pela longa vivência, profundos
conhecedores dos costumes do grupamento social a que os indivíduos em conito se acha-
vam integrados). Só mais tarde foi que o Estado avocou, em caráter monopolístico e como
medida tendente a preservar a estabilidade das relações sociais, o encargo de compor hete-
ronomamente as lides, instituindo, para essa nalidade, um poder especíco: o Judiciário.
A falibilidade, contudo, sempre se fez inerente à natureza humana; sendo assim, a
possibilidade de haver equívoco ou qualquer outra erronia (involuntária, ou não) nas de-
cisões proferidas pelos julgadores logo aorou à consciência de todos, e, em particular, do
legislador, como algo tão natural e inevitável quanto o próprio ato de pensar. Também não
se perdeu de vista a circunstância de alguns julgamentos serem até mesmo suscetíveis de
sofrer fortes inuências de fatores subjetivos, como a emoção, ou de certas injunções externas,
como, v.g., as pressões do poder constituído, da Igreja, a ingerência das classes dominantes,
os interesses de grupos, etc.
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Manoel Antonio Teixeira Filho
Parece-nos razoável reconhecer nessa espécie de consciência de falibilidade das decisões
humanas a causa essencial e remota de haver-se permitido — e em alguns casos tornado
obrigatório — o reexame dos pronunciamentos jurisdicionais por órgão, em regra, hierar-
quicamente superior. Do ponto de vista eminentemente objetivo, todavia, não há negar que
essa revisão dos julgamentos surgiu para atender aos inomitíveis imperativos de justiça e
de credibilidade das resoluções judiciais, como forma de preservar a própria paz social. Os
jusnaturalistas, porém, sustentam que os recursos decorrem do direito natural; dentre eles,
citamos Gouvea Pinto. Não concordamos, data venia, com esse entendimento. Pode-se dizer
que o anseio de justiça seja algo que se relacione com o direito natural; não há, todavia,
como vislumbrar nesse direito o fundamento do instituto recursal, uma vez que — embora
infrequente — há casos em que uma sentença justa é substituída por um acórdão injusto,
conforme já advertia Ulpiano.
Seria inescusável omitir, por outro lado, que esse revisionamento teve, em determinadas
épocas, um escopo marcadamente político, bastando lembrar a atuação dos Príncipes, no
século XV, que, ao se tornarem antifeudais, passaram a empenhar-se, com denodo, na
centralização — e no consequente monopólio — da atividade legislativa e da administração
da justiça, como estratagema sutil para provocar o enfraquecimento dos feudos. Tal fato levou
Glasson e Tissier a armarem, com razão, que “l’histoire du droit d’appel est étroitement mêlée
à l’histoire des progress du pouvouir royal” (“Traité éorique et Pratique d’Organisation
Judiciaire de Compétence et de Procédure Civile”, vol. I, p. 81). Em tradução livre: “A história
do direito de apelação está estreitamente ligada ao progresso do poder real”.
Nesse quadro de prepotência e de despotismo, avultava-se, como uma espécie de senhor
da justiça, a gura do rei; qualquer julgamento somente poderia ser realizado por ele, ou
mediante sua delegação de poderes. Ao monarca cava reservado, em qualquer hipótese,
o direito de rever as decisões prolatadas por seus prepostos; essa prerrogativa o fazia, à
evidência, todo poderoso diante dos senhores feudais, dos suseranos, e, em sentido mais
amplo, dos reinóis em geral.
Vale ser mencionado, como espelho el e expressivo desse período, o § 1.º do Título V,
Livro III, das Ordenações Filipinas, que estatuía: “Porém, nós poderemos mandar em todo
caso por simples petição trazer perante nós per nosso especial mandado qualquer feito, ainda
que seja da almotaceria, quando houvermos por nosso serviço, porque assim foi usado pelos
Reis, que ante nós foram”. A almotaceria era um tribunal antigo, presidido por um almotacel,
cuja competência era para taxar, avaliar e xar os preços dos gêneros alimentícios, ao qual
igualmente se atribuía o encargo de cuidar da exatidão dos pesos e medidas (do árabe: Al
muhtaçaib = mestre de aferição).
A reapreciação dos julgados, entretanto, não data do período reinol, como se possa
supor; em verdade, é quase tão antiga quanto o próprio direito material dos povos, a despeito
de não se poder cogitar, em rigor, nos albores da civilização humana, da gura do recurso,
conforme a posição que esse salutar instituto ocupa no quadro da moderna ciência processual.
De qualquer maneira, como pondera Alcides de Mendonça Lima, o que importa, efetivamente,
é “estabelecer, nas fontes históricas, que, em essência, a ideia de recurso se acha arraigada no
espírito humano, como uma tendência inata e irresistível, como uma decorrência lógica do
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