Capítulo II - Pressupostos Processuais e Condições da Ação

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Manoel Antonio Teixeira Filho
Capítulo II
Pressupostos Processuais
e Condições da Ação
Pressupostos processuais
A doutrina brasileira, desde muito tempo, apropriou-se do vocábulo pressuposto para
designar os requisitos necessários à existência ou validade do processo. Não se pode dizer
que essa escolha vocabular tenha sido adequada, porquanto, em rigor, o referido substan-
tivo traduz a ideia de conjectura, pretexto, desígnio, propósito, projeto, plano.(32) Trata-se,
portanto, de um fenômeno semântico, pois se passou a atribuir a esse termo o sentido de
requisito. Curvemo-nos, todavia, à força da tradição e passemos a falar, igualmente, em
pressupostos processuais.
Esses pressupostos não se confundem com as condições da ação. Enquanto aqueles
dizem respeito aos requisitos necessários para a constituição (existência) e desenvolvimento
(validade) regulares da relação processual, estas expressam as exigências para que o direito
público subjetivo de invocar a tutela jurisdicional do Estado, colimando a obter um pro-
nunciamento de mérito, seja corretamente exercido. Das condições da ação, em particular,
iremos ocupar-nos mais adiante.
Sob o aspecto prático, a distinção entre pressupostos processuais e condições da ação
não é de muita relevância, se considerarmos que tanto a inexistência daqueles, quanto destas,
conduz ao mesmo resultado: a extinção do processo sem resolução do mérito (CPC, art. 485,
incisos IV e VI, respectivamente).
Armamos, há pouco, que os pressupostos em estudo se ligam à relação jurídica pro-
cessual; torna-se recomendável, em razão disso, lançar alguns escólios acerca da mencionada
relação.
Büllow foi um dos primeiros juristas a reconhecer que a relação de direito material
é distinta da relação jurídica processual. Segundo ele, existem no processo duas relações
inconfundíveis, a serem apreciadas pelo juiz, que, desse modo, deverá decidir não apenas
sobre a existência do direito controvertido, “mas também para conhecê-lo, examinar se
concorrem os requisitos de existência do próprio processo; deve vericar, assim, além da
questão pertinente à relação jurídica litigiosa (res in iudicio deducta), também a concernente
à relação jurídica processual (iudicium). Esse dualismo da matéria processual desde sempre
(32) AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Delta, 1964. vol. IV, p.
3.255.
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existiu, determinado pela estrutura do procedimento judicial. Ele conduz a uma divisão do
processo em duas fases, do qual uma delas é dedicada ao exame da relação jurídica material
e outra à vericação dos pressupostos processuais”. (33)
Em termos gerais, Büllow sustenta que a relação jurídica processual se desassemelha
da relação material sob três aspectos: a) pelos sujeitos; b) pelo objeto; c) pelos pressupostos.
a) Sujeitos
Fortemente inspirada em Büllow, a doutrina moderna aponta o juiz, o autor e o réu
como os três principais sujeitos do processo. Bulgaro já armava, apropositadamente, que
iudicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei. Impõe-se um pequeno reparo à
opinião dos notáveis juristas citados: é que, na verdade, o juiz não é, em si mesmo, sujeito
da relação processual, mas, sim, o Estado, do qual ele é representante. O juiz não atua no
processo como pessoa natural, senão que como órgão jurisdicional, em que pese à circuns-
tância de a sua individualidade subjetiva poder ensejar as objeções de impedimento ou de
suspeição. Já a incompetência é algo de foro objetivo, que, por isso, toca ao juízo e não ao juiz.
O magistrado, aliás, não se coloca, no processo, em plano de igualdade com os litigantes; ao
contrário, situa-se entre eles e acima deles, com a preeminência que deriva de seu ontológico
dever de neutralidade e de seu indelegável poder-dever de solucionar, como órgão estatal,
os conitos de interesses ocorrentes entre os indivíduos ou as coletividades.
Assunto que ainda não foi inteiramente pacicado pela manifestação doutrinária atine
ao estabelecimento da relação jurídica processual e seus pontos de interseção. Em Kohler,
ela apresenta um sentido simplesmente linear, pois dela participam, apenas, autor e réu.
Hellwig, dando um passo à frente, sustentou a angularidade dessa relação, entendendo que
ela interliga, de um lado, autor e Estado; de outro, Estado e réu. Outros, como Adolfo Wach
e o próprio Büllow, defendem a ideia de que existe aí uma triangularidade, formada pela
presença de posições jurídicas que uniriam autor e Estado; Estado e réu; réu e autor.
A teoria linear, de Kohler, é insatisfatória, pecando pelo fato de restringir, gravemente,
essa relação ao autor e ao réu, ou seja, unicamente aos litigantes, como se o processo fosse
propriedade destes, um seu particular instrumento de resolução de controvérsias, de tal
maneira que dele pudessem dispor ao seu exclusivo alvedrio. Nunca é demasiado lembrar
que o direito processual pertence ao ramo do Direito Público e que o processo constitui
método estatal de solução de conitos de interesses.
A teoria angular, ideada por Hellwig, conquanto se coloque mais próxima da realidade
cientíca do que a linear, ao atribuir à relação processual um sentido mais amplo, também
se revela deciente ao não reconhecer um vínculo entre autor e réu; para ela, como foi visto,
a relação jurídica se dá entre autor e Estado e entre Estado e réu. Essa doutrina, entretanto,
ca a dever-nos uma explicação satisfatória diante do fato de alguns sistemas processuais,
como o brasileiro, permitirem que autor e réu, mediante concerto de vontades, obtenham
a suspensão do processo (CPC, art. 313, II). Além disso, se inexiste relação processual a
(33) Apud SANTOS, Ernane Fidélis dos. Introdução ao Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 49.
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interligar autor e réu, como justicar a regra legal que lhes impõe o dever de lealdade e de
boa-fé, punindo-os se o descumprirem (CPC, art. 81)?
A despeito de pequenas imperfeições que a acompanham, pensamos que a teoria da
triangularidade seja a que, dentre as concebidas, melhor se harmoniza com o atual estádio
de desenvolvimento cientíco do processo e com as disposições normativas dos modernos
sistemas processuais, neles incluído o de nosso país. Cabe aqui uma advertência oportuna.
Quando admitimos a existência de uma tríplice angularidade da relação jurídica processual
não estamos armando que essa triangularidade deverá estar invariavelmente congurada
nos casos concretos. Imaginemos, v. g., que o juiz indera a petição inicial por um dos
motivos previstos em lei (CPC, art. 330); nesta hipótese, é evidente que, em virtude desse
fato acidental, a relação processual se estabeleceu, apenas, entre o autor e o juiz, pois o réu
nem chegou a ser citado. O caráter linear que a relação apresentou no exemplo indicado
não pode ser interpretado como algo normal e comum, mas, ao contrário, como autêntico
acidente que impediu a constituição da triangularidade, esta sim, regular e característica.
Se — para carmos ainda no exemplo sugerido — o autor interpuser recurso ordinário do
ato jurisdicional que, indeferindo a peça vestibular por inepta, determinou a extinção do
processo sem pronunciamento quanto ao mérito, e o órgão ad quem der provimento ao
recurso, aberta cará a possibilidade para que a relação processual alcance os seus três ân-
gulos regulares, a saber: a) autor/Estado; b) Estado/réu; c) réu/autor, segundo a sequência
cronológica de sua constituição.
A relação (a) linear ocorre em todos os casos, ainda que o autor venha a desistir da ação
antes mesmo do despacho determinativo da citação do réu (embora esse despacho não seja
exigido no processo do trabalho, como demonstra o art. 841, caput, da CLT). A linearidade,
a nosso ver, surge no momento em que o autor invoca a prestação da tutela jurisdicional,
mediante a entrega da inicial em juízo. O indeferimento dessa petição ou a desistência da
ação não podem ser alegados como causas impeditivas do estabelecimento da relação pro-
cessual entre o autor e o juiz; fosse exato o argumento, que fato — a não ser, precisamente,
o da existência dessa relação — teria autorizado o juiz a indeferir a inicial ou a homologar
a desistência da ação?
A angularidade (b) se forma com a citação do réu (autor/Estado + Estado/réu) e não
com o comparecimento deste ao órgão jurisdicional. O processo moderno não exige a pre-
sença do réu em juízo, como requisito para que passe a integrar a relação processual, e sim
que a ele seja concebida a oportunidade para apresentar a resposta (exceção, contestação,
reconvenção, reconhecimento da “procedência” do pedido) que pretender. Impor a presença
do réu em juízo, para esse efeito, seria colocar os seus interesses acima dos da Justiça e fazer
perigosa concessão a um obscuro passado do processo.
Torna-se triangular (c) a relação jurídica processual, adquirindo, assim, a plenitude
de seu abrangimento, quando se dá o contato direto das partes entre si, em decorrência das
posições jurídicas antagônicas que ostentam na lide. Na revelia — que se caracteriza pela
ausência injusticada de resposta do réu —, porém, não se estabelece essa tríplice angularidade,
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