Capítulo II - Pressupostos Processuais e Condições da Ação
Páginas | 150-182 |
150
Manoel Antonio Teixeira Filho
Capítulo II
Pressupostos Processuais
e Condições da Ação
Pressupostos processuais
A doutrina brasileira, desde muito tempo, apropriou-se do vocábulo pressuposto para
designar os requisitos necessários à existência ou validade do processo. Não se pode dizer
que essa escolha vocabular tenha sido adequada, porquanto, em rigor, o referido substan-
tivo traduz a ideia de conjectura, pretexto, desígnio, propósito, projeto, plano.(32) Trata-se,
portanto, de um fenômeno semântico, pois se passou a atribuir a esse termo o sentido de
requisito. Curvemo-nos, todavia, à força da tradição e passemos a falar, igualmente, em
pressupostos processuais.
Esses pressupostos não se confundem com as condições da ação. Enquanto aqueles
dizem respeito aos requisitos necessários para a constituição (existência) e desenvolvimento
(validade) regulares da relação processual, estas expressam as exigências para que o direito
público subjetivo de invocar a tutela jurisdicional do Estado, colimando a obter um pro-
nunciamento de mérito, seja corretamente exercido. Das condições da ação, em particular,
iremos ocupar-nos mais adiante.
Sob o aspecto prático, a distinção entre pressupostos processuais e condições da ação
não é de muita relevância, se considerarmos que tanto a inexistência daqueles, quanto destas,
incisos IV e VI, respectivamente).
Armamos, há pouco, que os pressupostos em estudo se ligam à relação jurídica pro-
cessual; torna-se recomendável, em razão disso, lançar alguns escólios acerca da mencionada
relação.
Büllow foi um dos primeiros juristas a reconhecer que a relação de direito material
é distinta da relação jurídica processual. Segundo ele, existem no processo duas relações
inconfundíveis, a serem apreciadas pelo juiz, que, desse modo, deverá decidir não apenas
sobre a existência do direito controvertido, “mas também para conhecê-lo, examinar se
concorrem os requisitos de existência do próprio processo; deve vericar, assim, além da
questão pertinente à relação jurídica litigiosa (res in iudicio deducta), também a concernente
à relação jurídica processual (iudicium). Esse dualismo da matéria processual desde sempre
(32) AULETE, Caldas. Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Delta, 1964. vol. IV, p.
3.255.
6379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 1506379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 150 24/08/2022 11:30:1924/08/2022 11:30:19
151
A Sentença no Processo do Trabalho
existiu, determinado pela estrutura do procedimento judicial. Ele conduz a uma divisão do
processo em duas fases, do qual uma delas é dedicada ao exame da relação jurídica material
e outra à vericação dos pressupostos processuais”. (33)
Em termos gerais, Büllow sustenta que a relação jurídica processual se desassemelha
da relação material sob três aspectos: a) pelos sujeitos; b) pelo objeto; c) pelos pressupostos.
a) Sujeitos
Fortemente inspirada em Büllow, a doutrina moderna aponta o juiz, o autor e o réu
como os três principais sujeitos do processo. Bulgaro já armava, apropositadamente, que
iudicium est actum trium personarum: judicis, actoris et rei. Impõe-se um pequeno reparo à
opinião dos notáveis juristas citados: é que, na verdade, o juiz não é, em si mesmo, sujeito
da relação processual, mas, sim, o Estado, do qual ele é representante. O juiz não atua no
processo como pessoa natural, senão que como órgão jurisdicional, em que pese à circuns-
tância de a sua individualidade subjetiva poder ensejar as objeções de impedimento ou de
suspeição. Já a incompetência é algo de foro objetivo, que, por isso, toca ao juízo e não ao juiz.
O magistrado, aliás, não se coloca, no processo, em plano de igualdade com os litigantes; ao
contrário, situa-se entre eles e acima deles, com a preeminência que deriva de seu ontológico
dever de neutralidade e de seu indelegável poder-dever de solucionar, como órgão estatal,
os conitos de interesses ocorrentes entre os indivíduos ou as coletividades.
Assunto que ainda não foi inteiramente pacicado pela manifestação doutrinária atine
ao estabelecimento da relação jurídica processual e seus pontos de interseção. Em Kohler,
ela apresenta um sentido simplesmente linear, pois dela participam, apenas, autor e réu.
Hellwig, dando um passo à frente, sustentou a angularidade dessa relação, entendendo que
ela interliga, de um lado, autor e Estado; de outro, Estado e réu. Outros, como Adolfo Wach
e o próprio Büllow, defendem a ideia de que existe aí uma triangularidade, formada pela
presença de posições jurídicas que uniriam autor e Estado; Estado e réu; réu e autor.
A teoria linear, de Kohler, é insatisfatória, pecando pelo fato de restringir, gravemente,
essa relação ao autor e ao réu, ou seja, unicamente aos litigantes, como se o processo fosse
propriedade destes, um seu particular instrumento de resolução de controvérsias, de tal
maneira que dele pudessem dispor ao seu exclusivo alvedrio. Nunca é demasiado lembrar
que o direito processual pertence ao ramo do Direito Público e que o processo constitui
método estatal de solução de conitos de interesses.
A teoria angular, ideada por Hellwig, conquanto se coloque mais próxima da realidade
cientíca do que a linear, ao atribuir à relação processual um sentido mais amplo, também
se revela deciente ao não reconhecer um vínculo entre autor e réu; para ela, como foi visto,
a relação jurídica se dá entre autor e Estado e entre Estado e réu. Essa doutrina, entretanto,
ca a dever-nos uma explicação satisfatória diante do fato de alguns sistemas processuais,
como o brasileiro, permitirem que autor e réu, mediante concerto de vontades, obtenham
a suspensão do processo (CPC, art. 313, II). Além disso, se inexiste relação processual a
(33) Apud SANTOS, Ernane Fidélis dos. Introdução ao Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 49.
6379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 1516379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 151 24/08/2022 11:30:1924/08/2022 11:30:19
152
Manoel Antonio Teixeira Filho
interligar autor e réu, como justicar a regra legal que lhes impõe o dever de lealdade e de
A despeito de pequenas imperfeições que a acompanham, pensamos que a teoria da
triangularidade seja a que, dentre as concebidas, melhor se harmoniza com o atual estádio
de desenvolvimento cientíco do processo e com as disposições normativas dos modernos
sistemas processuais, neles incluído o de nosso país. Cabe aqui uma advertência oportuna.
Quando admitimos a existência de uma tríplice angularidade da relação jurídica processual
não estamos armando que essa triangularidade deverá estar invariavelmente congurada
nos casos concretos. Imaginemos, v. g., que o juiz indera a petição inicial por um dos
fato acidental, a relação processual se estabeleceu, apenas, entre o autor e o juiz, pois o réu
nem chegou a ser citado. O caráter linear que a relação apresentou no exemplo indicado
não pode ser interpretado como algo normal e comum, mas, ao contrário, como autêntico
acidente que impediu a constituição da triangularidade, esta sim, regular e característica.
Se — para carmos ainda no exemplo sugerido — o autor interpuser recurso ordinário do
ato jurisdicional que, indeferindo a peça vestibular por inepta, determinou a extinção do
processo sem pronunciamento quanto ao mérito, e o órgão ad quem der provimento ao
recurso, aberta cará a possibilidade para que a relação processual alcance os seus três ân-
gulos regulares, a saber: a) autor/Estado; b) Estado/réu; c) réu/autor, segundo a sequência
cronológica de sua constituição.
A relação (a) linear ocorre em todos os casos, ainda que o autor venha a desistir da ação
antes mesmo do despacho determinativo da citação do réu (embora esse despacho não seja
a nosso ver, surge no momento em que o autor invoca a prestação da tutela jurisdicional,
mediante a entrega da inicial em juízo. O indeferimento dessa petição ou a desistência da
ação não podem ser alegados como causas impeditivas do estabelecimento da relação pro-
cessual entre o autor e o juiz; fosse exato o argumento, que fato — a não ser, precisamente,
o da existência dessa relação — teria autorizado o juiz a indeferir a inicial ou a homologar
a desistência da ação?
A angularidade (b) se forma com a citação do réu (autor/Estado + Estado/réu) e não
com o comparecimento deste ao órgão jurisdicional. O processo moderno não exige a pre-
sença do réu em juízo, como requisito para que passe a integrar a relação processual, e sim
que a ele seja concebida a oportunidade para apresentar a resposta (exceção, contestação,
reconvenção, reconhecimento da “procedência” do pedido) que pretender. Impor a presença
do réu em juízo, para esse efeito, seria colocar os seus interesses acima dos da Justiça e fazer
perigosa concessão a um obscuro passado do processo.
Torna-se triangular (c) a relação jurídica processual, adquirindo, assim, a plenitude
de seu abrangimento, quando se dá o contato direto das partes entre si, em decorrência das
posições jurídicas antagônicas que ostentam na lide. Na revelia — que se caracteriza pela
ausência injusticada de resposta do réu —, porém, não se estabelece essa tríplice angularidade,
6379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 1526379.9 - A Sentença no Processo do Trabalho - 6a ed - fisico.indd 152 24/08/2022 11:30:1924/08/2022 11:30:19
Para continuar a ler
PEÇA SUA AVALIAÇÃO