Caso Xukuru e o Bem Viver do povo Fulni-

Autorde Santana, Paula Manuella Silva

Apresentação

O Bem Viver dos povos indígenas, isto é, a articulação entre os direitos à terra, à água, à natureza em harmonia com as culturas locais, à dignidade e à vida, corriqueiramente é ferido no Brasil. Em Pernambuco, região Nordeste do país, estado que congrega uma significativa população indígena, os territórios sagrados são o alvo de conflitos sangrentos entre produtores rurais, latifundiários, fazendeiros, invasores e os povos tradicionais, sob a égide da displicência diligente, colonial e, cada vez mais, permissiva do Estado brasileiro. A proposta aqui é refletir sobre o caso do povo indígena Xucuru, localizado no município de Pesqueira (PE), na Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e suas reverberações não apenas na garantia de direitos aos povos indígenas no país, mas também nos contornos que a luta de outros grupos étnicos de Pernambuco ganha a partir do resultado do pleito.

Para tanto, este ensaio busca agregar algumas das reflexões elaboradas na pesquisa Contribuições da Filosofia do Bem Viver e do Pensamento Indígena a uma Pedagogia Antirracista, desenvolvida no programa de Iniciação Científica da Universidade Federal Rural de Pernambuco--Unidade Acadêmica de Serra Talhada (UFRPE-UAST), durante os anos de 2018 e 2019, a partir da perspectiva da antropologia simétrica proposta por Latour (2009) e Ingold (2012). Por meio de um diálogo intercultural com Tosowmlaka Fulni-ô, reflete-se sobre as particularidades da luta pelo Bem Viver entre as comunidades indígenas de Pernambuco e como o caso Xucuru possibilita uma crítica decolonial a uma concepção universalista no campo do Direito e na efetivação de Direitos Humanos. O arcabouço conceitual da teoria crítica de direitos humanos desenvolvida por Flores (2009), a perspectiva intercultural em Direitos Humanos de Santos (2009), a teoria do pluralismo jurídico desenvolvida por Wolkmer (2015) e o potencial crítico e paradigmático aberto pelos novos constitucionalismos latino-americanos serão o aporte para sulear (1) o diálogo intercultural neste ensaio. Diante disso, propomos um exercício de deslocamento e desconstrução epistêmica. A ideia é trazer o manancial teórico e metodológico à medida que se faça necessário, recorrendo-se, para isto, a uma escrita ensaística que aprofunda e problematiza questões pertinentes postas ao longo do texto.

Neste sentido, é pertinente perguntar: como as noções que utilizamos nas Ciências Sociais e no Direito podem ser atingidas e desestabilizadas por experiências de vida radicalmente distintas? Muitas vezes não nos empenhamos em localizar nossos paradigmas teóricos, ou, em outras palavras, falta-nos comprometimento em mostra-los como parte de um local. Mesmo diante de todas as controvérsias que perpassam o vasto campo das Ciências Sociais--marcado pelo dissenso epistemológico e pela profunda interdisciplinaridade com outras ciências humanas--, ainda há centros de gravidade epistêmicos que levam a valorização de certas experiências de vida ou de certas perspectivas de conhecimento em detrimento de outras. As Ciências Sociais já aceitam os relatos de experiência e os saberes tradicionais como corpus de estudo; todavia, ainda assim, persiste uma profunda disparidade epistêmica. Essa crítica é empreendida desde a Virada Linguística, e aqui, em Abya Ayla (2), é mobilizada com força por intelectuais indígenas, pensadores/as pretas/os, pelas epistemologias feministas e cuir, assim como pelo grupo Modernidade/Colonialidade. Por sua vez, o Direito, por si só, já é a manifestação de uma certa colonialidade. Se há uma hegemonia epistêmica eurocêntrica nas Ciências Sociais, de maneira ainda mais monolítica e intransigente, isto também acontece com o Direito. Por tal, apenas no jogo de contraponto entre tradições e esquemas conceituais é que podemos fraturar ou desestabilizar esses centros de poder.

A terra, um dos elementos centrais das disputas jurídicas no Brasil, precisa ser pensada a partir de seus múltiplos significados. Müller e Simioni (2016), ao discutir os desafios para a demarcação das terras Guarani no Brasil, observam que a perspectiva do Ocidente sobre o conceito encontra-se alicerçada em uma semântica capitalista, a qual compreende a terra como um meio de produção e acumulação de riquezas. Na Modernidade, torna-se não apenas uma infraestrutura econômica, mas também um modo de produção do ser e passa a ter também um sentido político (MÜLLER; SIMIONI, 2016). Ainda para os autores, o modo de vida dos povos indígenas aponta para uma experiência de entendimento do significado da terra absolutamente diferente da cosmovisão da sociedade ocidental. Um significado que, aos olhos etnocêntricos da cultura do Ocidente, só pode ser entendido como algo místico e alheio à contemporaneidade dos sistemas capitalistas. Dentro das lógicas de manutenção e disputa de poder, esse modo de vida é sinônimo de atraso e precisa ser extinto em prol do progresso e do desenvolvimento econômico predatório (MÜLLER; SIMIONI, 2016).

Diante disto, a questão central deste ensaio está em um esforço de reflexão sobre a forma como os povos indígenas de Pernambuco, especialmente os Xucuru e os Fulni-ô, concebem a ideia de terra e como, por sua vez, tanto as Ciências Sociais quanto o Direito têm estabelecido mediações interculturais para a efetivação dos direitos básicos dessas populações. Trata-se de um aspecto relevante, porquanto abre senda para um processo de crítica decolonial do Direito ocidental a partir das lutas e cosmovisões dos próprios intelectuais indígenas.

O Bem Viver e a educação pela natureza

A filosofia do Bem Viver é um projeto ético compartilhado na atualidade pelos povos originários do mundo inteiro. Segundo Acosta (2016), o Bem Viver (3) é uma categoria em permanente construção e reprodução. Ela foi incorporada na Constituição do Equador de 2008 como sumak kawsay, da língua quéchua (sumak significando plenitude, o ideal, o bom, e kawsay significando vida), bem como na Constituição da Bolívia de 2009 como suma qamaña, da língua aimará (Suma significando plenitude, sublime, e Qamaña significando vida, conviver, viver). Nesses países, a categoria representa uma alternativa às atuais compreensões ocidentais de desenvolvimento e crescimento econômico.

Os povos indígenas do Equador, em 2008, conseguiram um feito inédito na história da América Latina, tendo, através de muita luta e resistência, garantido juridicamente a manutenção de um dos mais importantes traços de sua cosmologia, o direito à Pachamama (WILHELMI, 2009). A Pachamama é, na língua dos povos indígenas do Equador, o que entendemos como espaço e natureza. Neste caso, é um sentimento compartilhado por todos os povos indígenas que reivindicam como parte de sua existência a terra, a água, a natureza como divindade e fundamento mitológico para a existência humana. A Pachamama é a síntese do que acreditam os povos originários em sua complexidade social, cultural e existencial. Deste modo, as Constituições do Equador e da Bolívia garantem, até então, a natureza como prioridade e digna de ter seus direitos resguardados, assim como os seres humanos:

Na Constituição boliviana é apresentado como Viver Bem 'e aparece na seção dedicada às bases fundamentais do Estado, onde se fala dos princípios, valores e fins do Estado (ensaio 8). Ali se diz que o Estado 'assume e promove como princípios ético-morais da sociedade plural: amoa qhilla, amoa llulla, amoa suwa (não sejas preguiçoso, não sejas mentiroso nem sejas ladrão), suma qamaña (Viver Bem), ñandereko (vida harmoniosa), teko kavi (vida boa), ivi maraei (terra sem males) e qhapaj ñan (caminho ou vida nobre)'. Esta formalização boliviana é pluricultural, já que oferece a ideia do Viver Bem a partir de vários povos indígenas e todas as ideias estão no mesmo plano hierárquico (GUDYNAS, 2008, p. 8, grifos do autor). Walsh (2009) afirma que a incorporação do conceito de Bem Viver nas Constituições da Bolívia e do Equador foi uma conquista histórica emblemática. Antes disso, assim como ocorre na Constituição brasileira de 1988, o modo de vida indígena estava contemplado no aparato constitucional desses países, mas apenas como política de inclusão, direitos especiais e, ainda assim, tendo como modelo dominante o ocidental. Nas novas Constituições, o modelo plurinacionalista propõe a incorporação e a contribuição do Bem Viver para toda a sociedade, promovendo transformações reais e profundas na estrutura social. Um exemplo disso é que os saberes tradicionais passam a ser considerados como fonte de conhecimento para toda a sociedade, trazendo novas e mais profundas formas de interpretar e compreender o mundo.

A filosofia do Bem Viver é a visão de um mundo melhor a partir da descentralização dos Mercados e da desconstrução das estruturas do racismo indígena e do etnocentrismo. Deste modo, o Bem Viver é muito mais do que um estilo de vida, sendo, antes, um pacto ético e moral. É necessário que se faça entender essa forma de enxergar o mundo, uma vez que a perspectiva do Bem Viver denuncia o capitalismo e o seu suporte ideológico centralizado na razão instrumental historicamente estruturada no etnocentrismo europeu (LANDER, 2005).

Quijano (2005), por sua vez, declara que é fundamental pensar o racismo como alicerce ideológico para a manutenção de uma ordem capitalista estabelecida. Para tanto, se faz necessário problematizar, também, a sua configuração em escalas que sobressaem o micro e se articulam em um entendimento encontrado na própria definição de ciência. Quando se diz ciência, ciência tout court, está se falando de ciência ocidental; para se falar de ciência tradicional, é necessário acrescentar o adjetivo (CUNHA, 2007). Logo, ao pensarmos a natureza como algo que não se fundamenta como "corpo", mas enquanto "verdade", podemos buscar nos saberes tradicionais--ou seja, a ciência de povos originários--a relevância que existe em suas compreensões. Deste modo, em consonância com Ailton Krenak (2019), é válido refletir...

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