O Papel do Comunicado CAT-36/2004 na Glosa Unilateral dos Créditos do ICMS: Uma Expressão do Princípio Federativo

AutorValério Pimenta de Morais
Páginas283-302

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1. Introdução: um panorama da disfunção e da insuficiência verificadas nos preceitos normativos da Lei Complementar 24/1975 e do papel do Comunicado CAT-36/2004
1. 1 Delimitação do trabalho: da possibilidade de obstação do crédito do ICMS, decorrente de benefícios fiscais à margem da Constituição, diretamente pela Administração Tributária

Com o presente tem-se como principal pretensão alinhar razões que afastem o entendimento de que há a necessidade prévia de acesso ao Judiciário para que a Administração Tributária, em específico a paulista, decalcada, exemplificativamente, por todos, no Comunicado CAT-36/2004, possa promover a glosa unilateral de créditos oriundos de benefícios auferidos à margem da disciplina constitucional própria do ICMS - convênio-CONFAZ. Nessa medida, as razões que suportam a ativida-de da Administração Tributária, que aqui se farão presentes, revelam-se, diversamente, como expressão do princípio federativo, nos estreitos limites da previsão constitucional,1 vindo a alinhar-se, ainda, com a atuação do STF decidindo os casos da "guerra fiscal" entre os Estados e o Distrito Federal.

Neste toar, a razão que procuraremos contrapor encontra-se, por todos, na doutrina do Prof. Marco Aurélio Greco, que, a partir de um conceito de Federação aplicá-vel ao Brasil, entende pela exclusividade do Poder Judiciário no sentido da ineficácia de normas produzidas por entes federativos, sob pena de agressão ao próprio pacto federativo. Colaciona-se, no ponto, o quanto cuidado por esta doutrina: "A Constituição Federal consagra uma Federação solidária em que todos os Estados estão em posição de igualdade, o que impede sejam adotados atos unilaterais de bloqueio ou neutralização da eficácia da legislação alheia. O Poder Judiciário é a Instituição nacional competente para editar decisões que inibam a eficácia de quaisquer leis ou atos normativos estaduais. Antes do seu pronunciamento em ação proposta pelo Estado que se julgar afetado (ação direta de inconstitucionalidade ou ação cível originária), qualquer ato unilateral estadual que impute à legislação alheia a pecha de violadora da Constituição ou da Lei Complementar 24/1975 agride o pacto federativo"2 (grifos nossos).

1. 2 Um panorama da disfunção e da insuficiência verificadas nos preceitos normativos da Lei Complementar 24/1975

Aponta-se, jápornossas razões, como premissa fundante o frágil equilíbrio oferecido pelo sistema de controle da consti-tucionalidade, em resposta, reprimindo, anulando e obstando atos normativos de entes federativos, em específico dos Estados e do Distrito Federal, interessando-

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-nos para os limites do referido trabalho o quanto se relaciona com o imposto sobre circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação/ ICMS - de competência dos referidos entes federativos - Estados e do Distrito Federal -, em contraposição aos preceitos constitucionais de regramento de benefícios fiscais, incorporados nas disposições do art. 155, § 2o, XII, "g", da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

No ponto, portanto, nesta ordem de valores, revela-se inafastável a conclusão de que estamos diante de uma lacuna axio-lógica, apesar do pronunciamento repressivo normativo estabelecido pela Lei Complementar 24/1975, no alcance do seu art. 8o, de que se faz transcrição:

"Art. 8o.- A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente: I — a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria; II- a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.

"Parágrafo único. Às sanções previstas neste artigo poder-se-ão acrescer a presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição Federal" (grifos nossos).

Resta percorrer, em passo antecedente, a cadeia de validade que dá à Lei Complementar 24/1975 o núcleo de constitu-cionalidade, encontrando o arrimo de seu lastreamento constitucional. Assim, disciplina o art. 155, § 2o, XII, "g", da CF de 1988, invocando a normatividade própria de lei complementar, que cabe àquela tipo-logia normativa a forma de regulação mediante a qual os Estados e o Distrito Fede-ral promoverão a deliberação de isenções, de incentivos e benefícios fiscais, em sua concessão e revogação.

Desta feita, com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, o apelo constitucional apontava para que lei complementar disciplinasse um ponto essencial do federalismo fiscal, cuidando, em sentido amplo, da forma com que os benefícios fiscais seriam agregados ao sistema tributário, à vista da harmonização dos entes federativos.

Numa linha sumarizante, o legislador infraconstitucional não deu vazão a todas as necessidades legislativas concebidas e inauguradas com o novo corpo constitucional, o que também se revelou presente no ponto cuidado da disciplina própria do art. 155, § 2o, XII, "g", da CF de 1988.

Como ponto de superação, com pauta ainda na disciplina da ordem constitucional do art. 34, caput, do ADCT, que evidencia a manutenção do sistema tributário da Constituição de 1967, restou, então, todo o espaço para o fenômeno constitucional da recepção, uma vez que a referida Lei Complementar 24/1975 já se encontrava vigente e eficaz, sinalizando, ainda, que os embates entre os entes federativos propulsores da "guerra fiscal" não se revelam uma novidade.

Conforme apontado, a recepção do mecanismo de comando e controle encartado pela Lei Complementar 24/1975 não se mostra de todo eficaz, uma vez que se tem pronunciado, apesar do intenso exame da constitucionalidade promovido pelo STF sobre atos normativos, tradutores de benefícios introduzidos pelos entes federativos, uma evidente intensificação do fenômeno da "guerra fiscal", com a atuação dos Estados e do Distrito Federal na oferta de benefícios à margem da disciplina própria da Lei Complementar 24/1975, pautando-se na justificativa da atração de investimentos, que, de sua parte, trariam pre-tensamente elementos de estabilização social e econômica para os referidos entes.

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Reforça-se, portanto, o que se conceitua como lacuna axiológica retratada pela disciplina normativa da Lei Complementar 24/1975, uma vez que, apesar da existência de norma regendo uma situação fática, paradoxalmente, a referida disciplina revela-se em evidente descompasso, seja com pauta na injustiça da regra, seja com pauta na sua insuficiência, no caso, com nítido pronunciamento na dinâmica dos entes federativos no sentido do seu descumpri-mento, importando a utilização de benefícios fiscais à margem da disposição constitucional, que se concretizou, ou ao menos deveria se concretizar, com os preceitos normativos da referida lei complementar.

Nesta linha, não é outra a posição que se pode colher em nossa melhor doutrina: "Zitelman limita o reconhecimento da existência de lacunas não só aos casos não previstos pela lei, mas também aos casos que, embora previstos e regulados, não são totalmente disciplinados pela norma, que se revela imprecisa ou indeterminada no tocante a certo ou certos momentos da disciplina"3 (grifos nossos).

No mesmo toar o sempre presente escólio da Profa. Maria Helena Diniz: "Três são as principais espécies de lacunas: (...) (3a) axiológica, ausência de norma justa, isto é, existe um preceito normativo, mas, se for aplicado, sua solução será insatisfatória ou injusta"4 (grifos nossos).

Desta forma, a lacuna no ordenamento jurídico, de uma forma geral, diante do anseio de completude sistêmica, que se torna mais evidente na sua conceituação dinâmica, pode ser retratada como a aferição da incompletude normativa para a disciplina do comportamento. Há que se ter presente que esta incompletude pode se manifestar pela insatisfação na previsão normativa.

Diante da riqueza da doutrina, fazemos presentes a lição do Prof. Tércio Sampaio, na qual nos arrimamos: "(...). No caso da lacuna, conforme Engisch, esta incompletude é ainda insatisfatória. Trata-se da negação do 'satisfatório', isto é, do que é suficientemente feito. Este segundo termo é importante. Nem tudo que é completo é também insatisfatório. (...). Quando dizemos, portanto, que a lacuna é uma incompletude insatisfatória, exprimimos uma falta, uma insuficiência que não deveria ocorrer5 (grifos nossos).

Portanto, neste cenário promove-se a justificativa da consideração da previsão normativa, plasmada pela Lei Complementar 24/1975, como pronunciamento de uma lacuna axiológica. Assim, no plano infraconstitucional inegavelmente há uma norma revelando aspecto sancionatório do comportamento de concessão de benefícios fiscais à margem da moldura constitucional; contudo, tal previsão não se revela suficiente para o contingenciamento das condutas dos entes federativos postos em análise.

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