A Lei de Biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

AutorValkíria Aparecida Lopes Ferraro; Simone Vinhas de Oliveira
Páginas243-257

    Artigo produzido como resultado de pesquisas em andamento no projeto de pesquisa cadastrado pela Universidade Estadual de Londrina sob o nº. 04511 - Biotecnologia e Direito: A Possibilidade Jurídica da Utilização de Células Embrionárias em Período de Descarte sob o Prisma da Lei de Biossegurança, de autoria da segunda sob a coordenação da primeira.

Valkíria Aparecida Lopes Ferraro. Doutora em Direito Civil pela PUC/São Paulo. Professora permanente do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

Simone Vinhas de Oliveira. Mestranda do Programa de Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina.

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1 Introdução

Por uma análise empírica sobre a produção legislativa que regulam a atividade biotecnológica, realizou-se um recorte sobre a Lei de Biossegurança, verificandose um dos seus o efeito imediato: o poder discricionário da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio).

Esse modelo de normatização é assimétrico aos fundamentos éticos democrático, pois, trata-se de um órgão tecnocrata, vinculado ao poder executivo, decidindo, exclusivamente, sob a regulação da atividade biotecnológica.

Esse poder discricionário da CTNBio adverte para uma ausência de representatividade popular na regulação da CTNBio e aponta para uma ilegitimidade desta forma de normatização.

A discricionalidade do CTNBio, além de não legitimada no modelo democrático atual, nos distancia, ainda mais, do ideal de radicalização democrática conciliando a autonomia privada com o exercício da autonomia pública pelos fundamentos da ética discursiva, que converge à ampla participação popular.

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A procedimentalização dessa participação pode ocorrer por meio da regulamentação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) como forma de controle dos abusos possíveis cometidos pela biotecnologia.

2 A racionalidade da biotecnologia e os princípios da ética discursiva

Na segunda metade do XIX, o processo de desenvolvimento biotecnológico genético iniciou-se com o monge Gregor Mendel que, estudando as ervilhas do mosteiro, formulou leis estatísticas da hereditariedade. A partir disso, a investigação genética cresceu rapidamente pelo aperfeiçoamento dos instrumentos em laboratório com maior precisão nos exames microscópios das células, permitiramse desvelar suas estruturas e as informações genéticas presentes. Desde então, a biotecnologia progrediu revelando os segredos do DNA, revelando o código genético, transferindo e manipulando genes.

Na práxis tecno-científica, em especial na biologia molecular, com o domínio técnico sobre as estruturas, formas e conteúdos da vida nas espécies, há uma racionalidade tecno-instrumental da Modernidade1. Nesse sentido, Habermas (1986) coloca que no universo da tecnologia há uma grande racionalização da ausência de liberdade do homem que demonstra a impossibilidade da autonomia, da capacidade de decisão sobre a própria vida. Isto significa que a racionalidade da ciência e da técnica é, por essência, uma racionalidade de dispor, uma racionalidade de dominação.

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A racionalidade instrumental da biotecnologia obedece aos critérios da competitividade e dominação, cujos fins estão em si próprios e não na coletividade. Isso significa que o agir está voltado aos resultados das pesquisas, tendo como fim o avanço do domínio da técnica exclusivamente, o qual o próprio homem passou a ser objeto e perdeu a condição de sujeito.

Essa racionalidade instrumental (individualista e competitiva) provoca os riscos para sociedade na medida em que proporciona um desequilíbrio entre os que dominam a biotécnica e os que não dominam e debelam os maiores impactos na sociedade, o qual o conteúdo das descobertas interfere profundamente nas forças da natureza como nenhuma outra tecnologia antes conhecida. Nesse contexto, quanto mais poderosas são as novas tecnologias, maiores são as possibilidades de destruição dos ecossistemas e de modificação social, o que envolve o interesse geral da sociedade, interferindo, assim, na liberdade, na autonomia2 e na dignidade3 humana.

Nesse contexto, a teoria do agir comunicativo de Habermas apresenta a ética do discurso4, cujo elemento fundamental para orientar a conduta biotecnológica é à existência de princípios e como esses princípios devem ser entendidos porPage 247 uma racionalidade comunicativa5 por meio de um ato ideal e situações de falas ideais. O ato de fala ideal apresenta uma racionalidade comunicativa em seus argumentos e a situação ideal de fala significa a participação de todos os setores interessados com atos de fala ideal nos discursos do qual se constrói o consenso pela a força do melhor argumento6.

Habermas desenvolve a Ética Discursiva para a política, a ética e o Direito, o qual considera válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais. (HABERMAS, 2001, p. 142).

Nas palavras de Freitag (1989) a ética discursiva de Habermas é uma das peças-chaves do projeto de radicalização democrática. A questão da moralidade confunde aqui com a questão da democracia: debate público.

A partir desse paradigma procedimental ético pode-se construir uma análise empírica sobre a produção normativa7 que regulam a atividade biotecnológica.

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3 A lei de biossegurança sob a abordagem da ética discursiva

A Lei da Biossegurança nº. 11.105/2005 foi elaborada com um dos propósitos de regulamentar o Artigo 225, §1º, incisos II, IV e V da Constituição Federal, reunindo quatro relevantes matérias diversas: a pesquisa e a fiscalização dos organismos geneticamente modificados (OGM); a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia; o papel, a estrutura, as competências e o poder da CTNBio; e, por fim, a formação do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS).

Trata-se de um conteúdo amplo e diverso no corpo de uma mesma lei o que adverte para uma superficialidade das discussões realizadas. É evidente, então, que não houve a possibilidade de participação de todos os setores sociais, considerando o breve tempo e a ausência espaço público para debate combinado com uma diversidade de temas desta lei.

A Lei de Biossegurança partiu da regulamentação dos transgênicos, em especial o plantio de semente transgênica, para se alcançar a regulamentação de técnicas de reprodução humana assistida. O resultado dessa regulamentação ocorreu conforme tanto os interesses de laboratórios e de centros de pesquisas com células humanas como também para do agronegócio. Isto é, a Lei de Biossegurança foi elaborada com um caráter fragmentário e instrumental de setores da sociedade que tinham interessem próprios e individuais entre os diversos temas tratados.

A racionalidade instrumental é inerente aos sistemas econômico e tecnocientífico, os quais pertencem o agronegócio, centros de pesquisas e laboratórios. Esse agir instrumental resulta em benefício para a sociedade como o desenvolvimento econômico e o avanço científico. Entretanto, a racionalidade instrumental não realiza discursos que consideram os efeitos nocivos e irreversíveis para toda humanidade entre os temas da biotecnologia, pois seu fim está em si mesmo e não na coletividade e por isso a racionalidade instrumental não pode construir uma racionalidade comunicativa.

A racionalidade comunicativa pode interagir com o agir instrumental destes sistemas pelo tratamento ético. Ou seja, a ética discursiva pode conduzir formalmente a validez das normas do paradigma procedimental. Dessa maneira, a Ética do Discurso conduz como a sociedade entende o princípio da precaução, por exemplo, para atividade biotecnologia pela força do melhor argumento8.

Trata-se da reconstrução do imperativo categórico9 pela linguagem. APage 249 universalização do princípio é um processo dialógico. No princípio estão presentes os aspectos cognitivo e prático do agir comunicativo dos sujeitos por meio da linguagem. Em Kant, a objetividade do imperativo categórico tem um aspecto monológico e abstrato no sujeito apriórico. E pode ser reconstruído racionalmente numa perspectiva universalista. (BOUFLEUER, 2001). Habermas se fundamenta na intersubjetividade e no dialogo, pois entende a objetividade do como devo agir da norma baseado na racionalidade consensual comunicativa. Pelos aspectos formais da intersubjetividade, a teoria habermasiana é processual, dialógica e comunicativa envolvendo a participação dos sujeitos nos discursos.

Pelo Princípio da Universalização, a ética discursiva só considera válidas normas que exprimem uma vontade universal. Isto é, uma razão comunicativa que incluem as situações ideais oferecidas pelo conhecimento do interesse geral. E com o Princípio do Discurso, elaboram-se as situações ideais de fala como método para alcançar um consenso. As situações ideais incluem os interlocutores necessários nos discursos, ou seja, a expressão da vontade universal depende da garantia de participação de todos os setores da sociedade na discussão para elaboração da norma. Não há um conteúdo, mas, uma forma (Princípio da Universalização e Princípio do Discurso) como Princípio Ético que representam a procedimentalização do entender os princípios presente nas normas.

Na Lei de Biossegurança ressalta uma ausência de critérios para a atividade biotecnológica devido à mistura de temas10...

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