Jurisdição Constitucional na Constituição Federal de 1988: Entre Ativismo e Auto-Contenção

AutorAna Lucia Pretto Pereira
CargoBacharel em Direito pela UFPR
Páginas1-33

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Introdução Que quer dizer o Direito Constitucional?

Jurisdição. Do latim, jurisdictio, ou, dizer o direito.12 Daí se poder afirmar que jurisdição constitucional significa dizer o direito constitucional, dizer o que a Constituição quer dizer. Mas, quem diz esse direito constitucional? E mais, o que quer dizer esse direito? Deverá ser feita uma leitura moral, política ou neutra desse direito?

A jurisdição constitucional, no direito brasileiro, fica a encargo dos tribunais, nas ações coletivas e individuais em que se aventa uma determinada questão afeta à Constituição. Os tribunais, diante dos fatos, dizem o direito (da mihi factum, dabo tibi jus). Contudo, aPage 2 interpretação do direito não fica apenas a encargo dos tribunais, e sim de todos aqueles que com ele operam. É desse modo que se dá a construção e renovação diária do nosso sistema jurídico.

Porém, e especificamente no âmbito do direito constitucional, o documento central que é objeto de interpretação – a Constituição –, no caso brasileiro possui normas abstratas e vagas que dão aos seus intérpretes a possibilidade de um sem-número de respostas para um mesmo caso concreto (ou ainda não realizado, daí, abstrato). Nesse passo, é necessário restringir as opções interpretativas, a fim de se alcançar um sistema jurídico harmonioso, justo e coerente.

Mas não é só isso. É necessário, também, que essas opções interpretativas sejam legítimas, tenham um fundamento que as legitime (seja o princípio democrático, seja a concretização da Constituição) a fim de que as decisões judiciais possam lograr imperatividade e o respectivo cumprimento.

Destarte, a crescente demanda ao Poder Judiciário do exame de constitucionalidade das ações e omissões dos poderes constituídos vem exigindo daquele poder um maior esforço interpretativo – e de fundamentação –, que seja capaz de dar conta dos inúmeros litígios ajuizados a cada dia. Aqui, reside o campo fértil da atividade criativa do juiz, e também o campo fértil da discussão entre ativismo e auto-contenção judicial, entre Constituição e democracia.

Num contexto de inefetividade ou efetividade deficiente dos direitos fundamentais, como é o caso brasileiro, o debate entre ativismo e auto-contenção se mostra salutar, sob pena de, por um lado, elastecer-se ilegitimamente o poder jurisdicional; ou, por outro lado, limitar-se sobremaneira o seu dever de proteção dos direitos fundamentais contra ameaças dos poderes constituídos. Vejamos, pois, como se insere a jurisdição constitucional (o dizer constitucional) da nossa Constituição (da Constituição Federal de 1988), dentro do debate entre ativismo e auto-contenção judicial.

1. Notas sobre a Normatividade da Constituição Federal de 1988
1.1. A Abertura Normativa da Constituição

A Constituição Federal brasileira de 1988 possui 250 artigos, dentre os quais muitos contam com extenso rol de incisos, além de parágrafos e alíneas. Por essa razão, nossa CartaPage 3 Política é classificada como analítica3, o que denota, pode-se dizer, preocupação do constituinte originário com eventuais arbitrariedades dos agentes públicos responsáveis pelo cumprimento dos comandos constitucionais. O que é natural em uma carta constitucional cujo nascedouro sucede duas décadas de repressão.

Ocorre que tal desiderato do constituinte não foi suficiente para atender à complexidade das relações sociais que se inovam a cada dia na sociedade brasileira. A coexistência de uma pluralidade de valores (por vezes, de todo contraditórios) dificultam a formação de uma moralidade comum capaz de ser agregada em um punhado de princípios jurídico-constitucionais.4 Diante disso, é fato que não se pode mais confiar à simples atitude subsuntiva a efetividade da Constituição, o que significa a afirmação de sua onipresença.5

Demais disso, inobstante o detalhismo por que optou o constituinte originário, há outro impasse interpretativo na Constituição de 1988 e que está estreitamente ligado ao debate ativismo/auto-contenção judicial, que é a abertura6 do texto constitucional. A Constituição formal, por conta de sua própria natureza, além de fixar diretrizes e impor limites, é resultado da positivação de uma ordem de valores que uma determinada sociedade entende ser importante para si. E essa mesma positivação não poderia pretender normatizar cada situação in concreto,7 tanto pela inviabilidade de previsão legal de todas as situações jurídicas futuras, quanto pelo risco de se ter uma carta “dura”, e uma praxis estritamente dogmática.

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Nessa linha, é importante destacar o posicionamento de Susanna Pozzolo, que atribui ao período pós-guerra o melhor exemplo do momento de constitucionalização dos ordenamentos jurídicos ocidentais.8 Isso porque, segundo a autora, as atrocidades decorrentes dos conflitos bélicos fizeram ser reconhecido um grande número de princípios de justiça e de direitos fundamentais, impondo aos Estados tanto o dever de não intervenção na esfera privada dos cidadãos, quanto o de desenvolvimento de políticas positivas em prol da efetividade daqueles direitos fundamentais. Conseqüência disso é que a positivação daqueles valores e princípios se deu por meio de expressões vagas, elásticas e imprecisas, dando aos seus intérpretes – no caso, legisladores e julgadores, em sentido estrito – a tarefa de interpretar a aplicar aqueles valores através de uma tomada de posição moral, no intuito de dar-lhes concreção.9

Por isso, a abertura do texto da Constituição pode albergar um sem-número de possibilidades fáticas, o que atribui sensível liberdade de interpretação ao julgador, tornando relevante, nessa esteira, o debate acerca de sua legitimidade para dizer o que quer dizer a Constituição10 . Nas palavras de Sérgio Fernando Moro, “há relevante dúvida quanto à capacidade do juiz de oferecer respostas consistentes a todos os desafios interpretativos da Constituição.”11

1.2. A Imperatividade e/ou Supremacia da Constituição

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Outro aspecto conexo à jurisdição constitucional e ao debate que envolve sua legitimidade é o comando constitucional de agir direcionado ao legislador e ao administrador. A Constituição estabelece como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como a erradicação da pobreza e o bem-estar de todos os cidadãos.12 Paralelamente, não se pode negligenciar o fato de que a efetividade dos direitos fundamentais é a base sólida sobre a qual poderão ser alcançados esses objetivos fundamentais. Pois, sem autonomia (pública e privada), um povo jamais poderá alcançar a sua própria emancipação.13

Em razão disso, tem-se que a previsibilidade constitucional dos direitos fundamentais é prescritiva, e não meramente descritiva. Quer dizer, tratam-se, as normas constitucionais que veiculam direitos fundamentais, de comandos de agir aos seus destinatários, no caso, os agentes políticos responsáveis pela sua efetividade.14 Nas palavras de Clèmerson Merlin Clève, a Constituição diz o que deve ser feito. O como, fica a critério dos poderes constituídos. A Constituição estabelece metas prioritárias, objetivos fundamentais, que buscam o alcance da igualdade material dos cidadãos, a fim de promover e preservar a dignidade humana, obrigando as autoridades públicas em sua executoriedade.15 As políticas públicas veicularão o cumprimento dessa normatividade, dentro dos parâmetros constitucionalmente estabelecidos, agregada ao compromisso de efetividade dos direitos fundamentais.16

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Regina Macedo Ferrari defende a supremacia da Constituição como preceito capaz de impor aos poderes constituídos o dever de implementar condutas que efetivem as normas protetoras de bens jurídicos fundamentais. Para a autora, tal dar-se-ia não só pelo caráter supremo da Constituição, mas também pela possibilidade que certas normas admitem de assumir um caráter de direito subjetivo, permitindo ao particular “reclamar o seu reconhecimento, tanto diante da Administração como diante da Justiça.” Seria uma “execução forçada do direito.”17

De acordo com Ferrari, dentre as normas constitucionais programáticas, isto é, aquelas que “expressam princípios, fins ou tarefas, sem indicar os meios para alcançá-los”, há algumas18 que permitem a exigibilidade imediata da conduta determinada, sem a necessária intermediação do legislador, por força da imperatividade constitucional. Para a autora, tais normas estariam concentradas notadamente naquelas que cuidam da proteção da educação, saúde, cultura, meio ambiente e até mesmo esporte, elementos estes que reunidos – e garantidos pelo Estado – permitem a autonomia do cidadão dentro de um padrão de dignidade humana, posto que “determinam tarefas/dever para o Estado e se constituem em um direito fundamental para o jurisdicionado”19.

No caso brasileiro, é possível reconhecer que o Estado tem-se mostrado deficiente e/ou ineficiente quanto à promoção das necessidades sociais mais elementares dos cidadãos. Portanto, em vista da atividade legiferante no sentido de conferir concretude às normas constitucionais, e...

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