A globalização e a proteção do consumidor como direito fundamental

AutorPaula Santos de Abreu
Páginas5-19

Page 6

Introdução

Os processos de integração econômica consistem, normalmente, em acordos regionais de comércio, incrementando-se ao longo do tempo, com o objetivo de liberalização crescente de barreiras e aumento do comércio entre os países signatários. Globalização, no entanto, é um processo mais abrangente. Embora a questão econômica seja predominante, a existência de aspectos políticos e sociais é inegável. Este fenômeno acarreta sentimentos contraditórios ao redor do globo, mas, independentemente do que as pessoas pensam e sentem a este respeito, a realidade demonstra que a sociedade atual tem-se estruturado sem os limites de fronteiras. As empresas multinacionais expandem seu âmbito de atuação pressionando governos a formar acordos que possibilitem a ampliação de mercados consumidores.

Nesta esteira, vários países positivaram, em seus ordenamentos internos, o princípio da proteção do consumidor, considerado a parte mais frágil da relação de consumo1, até como forma de proteger a subsistência da economia de mercado2. Por este motivo, foi também necessário que o tema ultrapassasse fronteiras e fosse considerado nos tratados de integração, já que a desconsideração do consumidor seria um retrocesso histórico grave3.

A integração econômica e a globalização são, atualmente, meios viáveis para a realização de objetivos da humanidade, como a redução da pobreza, o avanço das relações humanas, o desenvolvimento do direito como instrumento de proteção da dignidade da pessoa humana e a igualdade das nações e dos povos. No entanto, as forças motrizes e os interesses vinculados a estes processos não têm, sempre, os mesmos objetivos. O propósito deste trabalho é analisar o contraste entre estes dois caminhos, onde se convergem, na proteção dos direitos humanos, e onde se distanciam, quando os direitos são violados pelas tendências neoliberais de livre concorrência e livre comércio.

Page 7

1. A evolução histórica da tutela do consumidor no mundo

Um dos primeiros instrumentos de que se tem conhecimento em relação à tutela do consumidor foi o Código de Hamurabi, que, por meio das Leis 233 e 234, protegia o consumidor nos casos de serviços deficientes4. Também o Código de Massú, vigente na Mesopotâmia, no Egito Antigo e na Índia do século XIII a.C., protegia os consumidores indiretamente ao tentar regular as trocas comerciais5.

No direito romano clássico, o vendedor era responsável pelos vícios da mercadoria a menos que os ignorasse. No Período Justiniano, a responsabilidade passou a ser atribuída ao vendedor independente de seu conhecimento do vício. Se a venda tivesse sido feita de má-fé, cabia ao vendedor ressarcir o consumidor devolvendo a quantia recebida em dobro.

Nas últimas décadas, os países viram a necessidade de unir-se em blocos, a fim de reduzir barreiras tarifárias e incrementar o comércio internacional para competir no mundo globalizado. Os consumidores passaram a contar com a facilidade de poder adquirir os mais variados produtos e serviços originários de qualquer parte do mundo. Entretanto, esta facilidade também veio acompanhada de uma série de dificuldades que demonstram a fragilidade do consumidor nas relações de consumo6. Este último, atraído por ofertas e métodos agressivos de marketing, por impulso ou senso de aventura, por jogos e prêmios e por acreditar em mitos, como qualidade superior de produtos importados, novidades e dificuldades com o idioma da oferta, assume riscos pela falta de proteção legal que o ampare.

Com efeito, somente após o crescimento dos grupos de defesa do consumidor e um longo período de mobilização da opinião pública no sentido de chamar a atenção dos legisladores para adoção de medidas protetivas é que o papel do consumidor, o “protagonista esquecido” nos tratados de integração, segundo Arrighi (p.126), foi levado em consideração. O Sherman Antitrust Act de 1890 foi a primeira manifestação moderna da necessidade de proteção do consumidor. Mas, apenas em 1962, com a mensagem do Presidente Kennedy aoPage 8 Congresso dos EUA, conhecida como “Declaração dos Direitos Essenciais do Consumidor”, pela qual se elencavam os quatro direitos básicos7, é que se consolidou a idéia de sua tutela.

Posteriormente, já na década de 70, foi a vez de a Europa manifestar-se sobre o assunto, principalmente, pelo Conselho da Europa, em 1973, e da Comunidade Econômica Européia, em 1975. Na mesma época, a Comissão de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU), na 29a sessão, reconheceu como direitos fundamentais e universais do consumidor, aqueles contidos na Declaração dos Direitos Essenciais do Consumidor dos Estados Unidos.

Finalmente em 1985, a Assembléia Geral da ONU editou a resolução n. 39/248 de 10/04/1985 sobre a proteção ao consumidor, positivando o princípio da vulnerabilidade no plano internacional. As diretrizes constituíam um modelo abrangente, descrevendo oito áreas de atuação para os Estados, a fim de prover proteção ao consumidor. Entre elas: a) proteção dos consumidores diante dos riscos para sua saúde e segurança, b) promoção e proteção dos interesses econômicos dos consumidores, c) acesso dos consumidores à informação adequada, d) educação do consumidor, e) possibilidade de compensação em caso de danos, f) liberdade de formar grupos e outras organizações de consumidores e a oportunidade de apresentar suas visões nos processos decisórios que as afetem. Estas diretrizes forneceram importante conjunto de objetivos internacionalmente reconhecidos, destinados aos países em desenvolvimento, a fim de ajudá-los a estruturar e fortalecer suas políticas de proteção ao consumidor8.

Em seguida, foram aprovadas as resoluções do Conselho Econômico e Social (julho/88 e julho/90). Em nível regional, a International Organization of Consumers Unions (IOCU), uma organização não governamental mundial em defesa do consumidor, celebrou, em Montevidéu, em outubro de 1986, a primeira conferência regional para a América Latina e o Caribe. Pouco depois, em março de 1987, a ONU, também em Montevidéu, impulsionou a realização de um encontro com pouco mais de 20 países e algumas organizações de consumidores para discutir a aplicação das diretrizes no continente.

Page 9

A partir daí, vários países passaram a abordar a questão da proteção do consumidor na jurisdição interna, adaptando ou elaborando a legislação. Brasil, Argentina, Peru, Honduras, Equador, Chile, Costa Rica, México, Paraguai e Uruguai promulgaram leis específicas sobre o tema, sendo que os três primeiros, além de El Salvador, incluíram a tutela do consumidor em suas constituições. Outros países, como Bolívia, Guatemala, Trinidad e Tobago, Nicarágua e Colômbia, estavam em processo de elaboração de suas legislações. O sucesso desta investida ocorreu graças à monitoração e à assistência da ONU aos países das Américas e da Ásia9.

Finalmente, em dezembro de 2002, a proteção do consumidor foi declarada direito fundamental pelos presidentes dos quatro Estados-membros do Mercosul10.

No entanto, é preciso notar o forte componente político-econômico nas regras de proteção (nacional) e internacional dos consumidores. Ao estabelecer normas mais protetivas, os países começam a produzir produtos de maior qualidade e, conseqüentemente, de maior aceitação internacional, além de proteger seu mercado interno de fornecedores estrangeiros não preparados para esta competição. Desta forma, o direito do consumidor regula o mercado em relação à concorrência e às políticas governamentais11.

2. A tutela do consumidor como direito fundamental

Para Cançado Trindade (1997, p.17), a idéia dos direitos humanos é tão antiga quanto a história das civilizações e tem como objetivo “afirmar a dignidade da pessoa humana, lutar contra todas as formas de dominação, exclusão e opressão, em prol da salvaguarda contra o despotismo e a arbitrariedade, e na asserção da participação na vida comunitária e do princípio da legitimidade”. Segundo o autor, o reconhecimento dos direitos básicos forma padrões mínimos universais de comportamento e respeito ao próximo, observando as necessidades e as responsabilidades dos seres humanos. Os direitos humanos são vinculados ao bem comum, tendo em vista a emancipação do ser humano de todo o tipo de servidão, inclusive a de ordem material.

Os direitos do homem foram conformados no século XVII, expandindo-se no século seguinte, ao tornar-se elemento básico da reformulação das instituições políticas. Atualmente,Page 10 não se denominam mais direitos do homem, mas, sim, direitos humanos, terminologia politicamente correta12. Portanto, direitos humanos fundamentais ou direitos fundamentais têm o mesmo significado13.

Bonavides (2000, p. 514-518) acredita que os direitos fundamentais são os do homem que as Constituições positivaram, recebendo nível mais elevado de garantias ou segurança. Cada Estado, pois, tem seus direitos fundamentais específicos. Entretanto, o autor acrescenta que os direitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT