A fruição dos direitos da mulher a partir das ações afirmativas

AutorRoseli Teresinha Michaloski Alves
CargoDiretora da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão, Paraná, mantida pelo CESUL – Centro Sulamericano de Ensino Superior. Bacharel em direito pela UFSM/RS, mestra em Educação nas Ciências, área do Direito, pela UNIJUÍ/RS, Pesquisadora na área dos Direitos Humanos da Mulher.
Páginas175-188

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Introdução

A violência e a discriminação contra a mulher é uma realidade histórica de difícil, mas não impossível, reversão, à medida que se encontra ancorada em falácias2, ou seja, em argumentos que, embora verdadeiros, implicam raciocínios inválidos e que levam a uma conclusão equivocada. Coerente com essa ótica interpretativa, o mundo hodierno presencia argumentos retrógrados e arcaicos, mas que permanecem em vigor. O universo machista argumenta que a mulher não pode desenvolver atividades que exigem força física, porque é frágil; que a mulherPage 176possui inteligência inferior à do homem, porque possui menor massa cerebral; que a mulher não pode exercer cargos que exigem poder decisório porque nela prepondera a emoção e não a razão.

Entretanto, a convivência humana e a sociedade contemporânea, especialmente a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito, calcado na dignidade da pessoa humana3 e nos direitos fundamentais, vem demonstrando que o papel da mulher é cada vez mais significativo e essencial para a construção de uma ordem social menos estiolada e mais justa. A partir disso, vislumbra-se um caminho longo e inóspito de desconstrução das falácias pulverizadas desde o mundo antigo até o presente.

O primeiro passo se traduz na autoconscientização dos próprios sujeitos envolvidos: as mulheres. Ou seja, se faz necessário, a partir de novas vivências e da tomada de consciência, a ruptura com um modelo já falido de sociedade, em que a mulher é estigmatizada, estereotipada e excluída das benesses sociais.

O segundo passo é a conscientização tanto da sociedade política, como da sociedade civil. Não raras vezes, esse processo é precedido de normas jurídicas legais que provocam, inicialmente, estarrecimento e, posteriormente, a tomada de consciência.

Nesse singular, é merecedor de encômios o avanço expressivo nas últimas produções legislativas do poder legiferante brasileiro em busca da otimização dos direitos fundamentais da pessoa humana; sobejamente, no que se refere à elaboração de atos normativos que tem como escopo coibir a violência e a discriminação contra a mulher (Lei Maria da Penha).

Semelhante é a posição do poder judicante brasileiro, cujas decisões vêm concretizando não somente normas constitucionais e infraconstitucionais, mas aquelas de caráter internacional. É nessa diretriz que a Convenção Americana de Direitos Humanos, subscrita em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, garante, no seu artigo 5º, que “Toda persona tiene derecho a que se respete su integridad física, psíquica y moral”4 (RUSSOMANO, 2004, p. 69). É nesse sentido que o presente texto foi erigido, constituindo-se, também, em um instrumento para o repensamento da condição humana das mulheres na contemporaneidade.

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1 As ações afirmativas e a fruição de direitos da mulher

As Ações Afirmativas vêm se constituindo em um instrumento essencial para a fruição dos direitos fundamentais da mulher. Inobstante a tutela estabelecida pelo Princípio da Igualdade insculpido no texto constitucional, traduzindo-se em uma isonomia formal, a violência e a discriminação contra a mulher permaneceram incólumes em diversas regiões do país. Resulta patente, com base no princípio em tela, que “o tratamento diferenciado dispensado a parcelas materialmente excluídas dos meios do direito e da política não é, necessariamente, um atentado contra a igualdade” (GALUPPO e BASILE, 2006, p. 102). Tal ressalva se faz necessária em face de alguns doutrinadores reconhecerem nas Ações Afirmativas um efeito deletério, ou seja, entendem que as Ações Afirmativas agridem o Princípio da Igualdade garantido pela Carta Constitucional de 1988.

A produção da igualdade fática, a efetivação da isonomia material e da redução das desigualdades sociais, enquanto formas de dirimir as mazelas enfrentadas pelas parcelas excluídas, encontra-se, a rigor, vinculadas às Ações Afirmativas, enquanto elemento de transformação da realidade social da mulher brasileira. Nesse diapasão, Gomes (2001, p. 21) ressalta que as Ações Afirmativas se constituem em:

Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.

Registra Alves (2006, p. 23) que as Ações Afirmativas compreendem discriminações legítimas, legais e constitucionais, sendo que “a discriminação positiva é toda medida pública ou privada que busca atender as demandas específicas das pessoas inseridas em um contexto social desfavorável”. Na mesma linha de pensamento, o Promotor de Justiça Marcelo Lessa Bastos (2006, p. 6), mestre e doutor em direito, ao tratar da inconstitucionalidade da Lei Maria da Penha, em virtude da suposta afronta ao princípio da igualdade, tece significativa consideração em torno das Ações Afirmativas, ao declarar que

Só quem não quer não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros. Nada tendo, desse modo, de inconstitucional. OutrasPage 178tantas ações afirmativas têm sido resultado de políticas públicas contemporâneas e, em que pesem algumas delas envoltas em polêmicas, não recebem a pecha de inconstitucionalidade.

Ainda, no tocante àqueles que criticam as medidas legais de proteção à mulher, fundamentados na inobservância do artigo 5°, inciso I5, do atual Diploma Constitucional brasileiro, obtempera a Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Maria Berenice Dias (2004, p. 73-74) que “A Plataforma de Ações aprovada na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, no ano de 1995, documento subscrito pelo Brasil, reafirma e recomenda a adoção de ações afirmativas, por meio de quotas, incentivos fiscais e medidas legais que busquem superar a desigualdade entre homens e mulheres” (Grifou-se).

Os juristas que têm se perfilhado à corrente favorável às Ações Afirmativas, justificam sua adoção a partir de seu escopo, ou seja, a reparação “de uma desigualdade de fato preexistente entre as pessoas” (KAUFMANN, 2007, p. 221). Assim é que Silva (2008, p. 10), ao tratar do desafio das Ações Afirmativas no direito pátrio, contribui significativamente para o entendimento cognoscente do respectivo instrumento ao explicar que:

A Constituição brasileira é pródiga em dispositivos que não só possibilitam a adoção de ações afirmativas por parte do Estado e de particulares, mas de fato criam verdadeiro mandamento de sua implementação sob pena de inconstitucionalidade por omissão. A adoção do princípio da igualdade material, a par do prestígio da igualdade formal cristalizada na fórmula do art. 5º, I, não poderia ser mais explícita.

As Ações Afirmativas se fundamentam na necessidade imperiosa de implementação e execução de políticas positivas que permitam o acesso das minorias à fruição dos direitos fundamentais, reconhecidos como universais. De conformidade com a juíza Amini Haddad Campos6 (2008, p. 4);

As iniciativas de ações afirmativas visam corrigir a discrepância entre o ideal igualitário predominante e/ou legitimado nas sociedades democráticas modernas e um sistema de relações sociais assinalado pelaPage 179desigualdade e hierarquia. Tal fórmula tem abrigo em diversos dispositivos do ordenamento jurídico brasileiro precisamente por constituir um corolário ao princípio da igualdade. A necessidade de se criar uma legislação que coíba a violência doméstica e familiar contra a mulher, prevista tanto na Constituição como nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, é reforçada pelos dados que comprovam sua ocorrência no habitual da mulher brasileira.

Inteira razão assiste aos preclaros juristas Galuppo e Basile (2006, p. 102). à medida...

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