Licença compulsória: uma alternativa do direito internacional ao acesso a medicamentos

AutorPatrícia Luciane de Carvalho
CargoConsultora jurídica, professora de direito internacional, presidente do Instituto do Direito da Propriedade Intelectual e Desenvolvimento, autora do livro Joint Venture – Uma Visão Econômica-Jurídica para o Desenvolvimento Empresarial e coordenadora da obra Propriedade Intelectual Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso.
1. O fundamento no Direito Internacional da Propriedade Intelectual

É com a construção do direito internacional que o direito as patentes farmacêuticas passa a ter importância para o comércio internacional e para a sociedade como forma propulsora do desenvolvimento sustentável. O conhecimento intelectual adquire valor de mercado e, portanto, necessária a proteção aos seus titulares. Porém, esta proteção, em decorrência da relevância para o desenvolvimento, não pode ser ilimitada, necessário que o uso exclusivo seja temporário, em respeito à proteção dos interesses sociais, os quais são base ao desenvolvimento.

Neste sentido, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indica que a propriedade intelectual equivale a elemento essencial para o rápido progresso tecnológico.

A relação da propriedade intelectual com o comércio internacional ocorre primordialmente na década de 70 diante da constatação que a proteção e exploração desses direitos ocasionam o desenvolvimento tecnológico e o aumento dos investimentos diretos. Então, faz-se necessária a promoção de uma proteção eficaz de forma ampla, ou seja, com fundamento internacional.

Constatou-se, na década de 70, além da relevância da propriedade intelectual, que este tema não poderia permanecer apenas na esfera nacional dos países; necessário, para a devida harmonização, que a sua base fosse estabelecida pela ordem internacional, como uma forma de parâmetro aos países signatários ou não das organizações internacionais.

A idéia central sobre a propriedade intelectual para Robert SHERWOOD2 é de que incremente o desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento por meio dos avanços já experimentados pelos países desenvolvidos, pelas suas políticas internas de desenvolvimento nacional. Coloca a responsabilidade dos Estados em promoverem o seu desenvolvimento com o que já existe acessível em outros países, com seus centros de pesquisas, para os quais a propriedade surge como geradora de inovação e difusão de conhecimento.

Em decorrência desta concepção, emerge a necessidade de um parâmetro mínimo de proteção aos diversos temas da propriedade intelectual, dentre eles o da proteção da patente farmacêutica (o que é feito pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio para o Desenvolvimento - TRIPS).

O patamar mínimo estabelecido pelo TRIPS as patentes farmacêuticas, em que pesem as problemáticas surgidas em virtude, principalmente, de atos políticos contrários ao fundamento internacional da propriedade intelectual, como os acordos TRIPS-plus, concede ao inventor da patente farmacêutica o uso exclusivo sobre a inovação por um determinado lapso temporal.

Neste sentido, patente farmacêutica corresponde a ato administrativo emitido por um governo respectivo que garante ao inventor os direitos exclusivos para controle, administração e exploração do invento. Importante que o respeito e valoração sejam feitos de forma equilibrada, ou seja, de um lado o inventor com o direito ao uso exclusivo por um lapso temporal e por outro lado que a sociedade não seja privada desse desenvolvimento tecnológico e científico.

O direito à propriedade intelectual por sua própria natureza é internacional e, desta forma, também o é o direito as patentes farmacêuticas, porque retrata a criação ou invenção humana, a qual, por seu valor sócio-econômico, transcende fronteiras. Esta contextualização alcança a licença compulsória.

Com a globalização da economia, têm-se a facilidade de reprodução em série e a distribuição da criação ou invenção de modo facilitado e descentralizado. Conseqüentemente, a proteção internacional é necessária para a própria manutenção e incentivo da atividade inventiva, visto que impulsiona e incrementa a economia dos países oferecendo maior solidez ao desenvolvimento sustentável.

Sem o reconhecimento da necessária proteção internacional os países não conseguiriam nem mesmo participar do processo econômico da globalização, por meio dos movimentos de integração, eis que as empresas, sobre este aspecto, evitariam produzir e ou comercializar em determinados países pela falta de proteção à invenção, com destaque as empresas vinculadas à inovação.

Deve-se compreender que a propriedade intelectual relacionada com o comércio internacional não ignora as repercussões em outras esferas, mas simplesmente prima pelo incremento do comércio por meio do direito internacional, em que este não poderá ser utilizado como impedimento, e sim como instrumento para o desenvolvimento internacional. Já os tratados que protegem os direitos humanos, como a saúde (acesso a medicamentos), não ignoram a relevância do comércio internacional, mas oferecem, através de seus instrumentos, destaque para a saúde pública, como exercício dos direitos humanos (interesses sociais), que se fazem essenciais também para o desenvolvimento sustentável.

A princípio, poder-se-ia pensar que o direito à propriedade intelectual estaria circunscrito apenas ao aspecto econômico. Não obstante esse traço característico seja de suma importância, a verdade é que esse ramo do direito envolve outros aspectos de igual relevância. Isso se explica pela própria noção de propriedade intelectual, que não envolve apenas proteção ao conhecimento oriundo da mente humana, mas também desenvolvimento social, histórico, cultural e político. Assim, há um setor comum ao direito à propriedade intelectual e aos direitos humanos, que é o aspecto social.

Além das problemáticas, relacionadas ao direito da propriedade intelectual, em matéria de patentes farmacêuticas, têm-se outras situações, que não se restringem as realidades das diversas ordens jurídicas nacionais, mas sim a situações coincidentes na ordem internacional, o que indica o necessário reconhecimento de seu fundamento junto à ordem internacional, com enfoque à construção dos tratados.

Em virtude da compreensão do fundamento internacional à propriedade intelectual, tem-se em 19 de junho de 1970 o Tratado de Cooperação em Matéria de Patente Farmacêutica, firmado em Washington, para desenvolver o sistema de patentes farmacêuticas e de transferência de tecnologia. Este ofereceu importância à efetiva transferência de tecnologia, principalmente na relação país desenvolvido e país em desenvolvimento.

Citou-se o Tratado de Cooperação em Matéria de Patente Farmacêutica, firmado em Washington, destacando-se a sua relevância ao desenvolvimento tecnológico. Ocorre que em matéria de fundamentação internacional para a propriedade industrial a construção tem início em 1883 com a Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial.

Têm-se a Convenção da União de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial e da União de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, respectivamente de 1883 e 1886. Estas convenções estabeleceram o início dos trabalhos de proteção na ordem internacional, bem como pelas diversas ordens jurídicas nacionais. Maior importância possui a Convenção da União de Paris eis que trata especificamente da propriedade industrial, a qual envolve a patente farmacêutica.

Corresponde a Convenção de Paris ao primeiro esforço na internacionalização do direito da propriedade intelectual, como também objetivou a solução de conflitos de leis, garantia dos direitos dos estrangeiros e criou um esforço cooperado – União -, que centralizou as atividades administrativas por meio do Bureau da União de Paris, que serviu de secretaria administrativa (semelhante aos trabalhos desenvolvidos atualmente pela OMPI).

O exercício para a formação de uma União corresponde às origens das organizações internacionais modernas, já que estabeleceu a solidariedade entre os Estados para o alcance de um mesmo objetivo. Então, a base para a realização dos trabalhos da União é como o é nos dias atuais a solidariedade entre as nações. Além de servir como parâmetro protetivo para os diversos países que lhe eram signatários, inaugurou o princípio do tratamento nacional e do tratamento unionista.

O tratamento nacional corresponde ao oferecimento de idêntico tratamento aos membros da União de Paris no que diz respeito às vantagens concedidas ou que venham a ser concedidas. Corresponde ao princípio da igualdade diante de condições idênticas, já que previa a liberdade legislativa dos signatários.

O artigo 15 da Convenção de Paris prevê a possibilidade de os Estados firmarem outros tratados relacionados à propriedade industrial, condicionados ao respeito às disposições da Convenção (semelhante ao que representa o TRIPS). Por sua vez, o tratamento unionista corresponde à concessão de direitos não concedidos ainda por nenhuma outra legislação.

Estes direitos devem ser respeitados pelos signatários e devem se sobrepor à legislação nacional.

No âmbito das Uniões da Convenção de Paris, tem-se a União voltada para a Proteção da Saúde do Homem que compreendia o Escritório Internacional de Saúde Pública e o Escritório Internacional de Higiene, de 1904 e 1907, respectivamente. Ou seja, a inter- relação entre os direitos pode não ser utilizada, na atualidade, pelos países em desenvolvimento, mas a sua existência data de muito antes dos trabalhos das organizações internacionais. O que estas fizeram foi renovar e intensificar (princípio da progressividade) os debates em virtude das ações cometidas no período entre guerras.

As convenções...

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