Caça: celeuma brasileiro

AutorAlzira Papadimacopoulos Nogueira
CargoAdvogada da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso
Páginas105-118

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1. Introdução

A escolha deste tema específico, levando-se em conta a gama de assuntos abordados pela legislação ambiental brasileira, decorre da necessidade de se demonstrar com clareza, as nuances encontradas nos textos legais vigentes em nosso País, que regem a competência concorrente para legislar sobre fauna e caça. No entanto, mister se faz, ter noção do que significa a terminologia fauna e os processos que configuram a caça, bem como, da situação em que se encontra os animais que pertencem à nossa fauna silvestre e, as tentativas para protegê-los.

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Seguindo essa orientação, conceituamos fauna como o conjunto dos animais próprios de uma região e, animais, aqueles que se dividem em invertebrados, mamíferos, aves, répteis e anfíbios. A fauna por sua vez, se divide em silvestre - aqueles pertencentes às espécies nativas, migratórias, aquáticas ou terrestres, que tenham parte do ciclo biológico ocorrendo naturalmente dentro dos limites do território brasileiro (tais como: jacaré, capivara, tucano, etc), domésticos - aqueles não pertencentes à fauna nativa e exótica que, tradicionalmente, convivem com e estão adaptados às sociedades humanas, por meio de um processo histórico, não possuindo condições de sobreviver naturalmente sem o auxílio humano (tais como: cães, gatos, etc..) e, exóticos - aqueles pertencentes às espécies ou subespécies cuja distribuição geográfica natural não inclui o território brasileiro e, aqueles pertencentes às espécies ou subespécies introduzidas pelo homem, inclusive as domésticas em estado feral. No caso dos peixes, esses se enquadram na fauna ictiológica, que deriva da água e, que por sua vez pode ser silvestre ou exótico, dependendo da bacia hidrográfica do qual faz parte.

Quanto à caça, por ser uma atividade faunística, engloba alguns atos que a tipificam, tais como: perseguição aos animais com arma de fogo e cães, assim como a utilização de armadilhas para a captura dos mesmos, deixando de acrescentar a perseguição pura e simples, como a apanha e finalmente a morte do animal, que ao meu ver, contexto dessa supramencionada atividade, apesar da Lei 6.905/98, em seu art. 29, ter separado cada ação em matar, perseguir, apanhar e caçar.

2. Breve histórico

Temos no Brasil, como primeira tentativa legislativa para se proteger os animais da crueldade e dos maus-tratos, as Ordenações Manoelinas, em 1521, com a proibição da caça a perdizes, lebres e coelhos, com fios, rede ou quaisquer outros instrumentos que causassem sofrimento na morte dos animais. A pena prevista para o infrator era o pagamento de "mil réis" e a perda dos instrumentos e dos cães utilizados na caçada.

Após quatrocentos e treze anos, mais precisamente em 10 de julho de 1934, deu-se grande passo em defesa dos animais, através do Decreto-Lei n.º 24.645, que estabelece medidas de proteção, passando-os à tutela do Estado e, impondo pena restritiva de liberdade a quem lhes impingisse maus-tratos. Esse Decreto-Lei trata dos animais de modo geral, mesmo que para alguns juristas, o instrumento em tela abrange tão somente os animais domésticos, pois, o propósito era o de se coibir a violência, diferente do texto legal a posteriori sancionado, que trouxe ao ordenamento jurídico a forma de proteção dos animais silvestres - a Lei 5.197, de 3 de janeiro de 1967, apesar de ser na verdade, um verdadeiro código de caça, por estabelecer os critérios para essa atividade, com alguns avanços, como por exemplo, tirou-se do caçador o direito de propriedade dos animais silvestres (art. 1°), conforme previa o

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art. 595 do Código Civil de 1916, passando-a ao Estado. Foi proibida a caça profissional (art. 3°) e disciplinada a atividade dos cientistas (art. 14). Algumas condutas, elevou-se à categoria de crimes (art. 27), a exemplo da caça profissional (art. 3°), com a pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos. Este texto legal fora alterado e completado pela Lei 7.653, de 12 de fevereiro de 1988, que determina ao Ministério Público Federal propor a ação penal, uma vez que o bem juridicamente tutelado é de propriedade da União, que figura como sujeito passivo.

Recentemente recebera outra modificação de cunho mais brando, pela Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, que é, na verdade, uma cópia melhorada do art. 1° da Lei 5.197/67, no que diz respeito às espécimes da fauna silvestre, vislumbrando maior avanço quando trata da prática de atos como o abuso e os maus-tratos a quaisquer tipos de animais, sejam eles silvestres, domésticos ou exóticos, criando ainda, a figura dos animais domesticados e nativos, o primeiro subentendendo-se como aquele selvagem em convívio com os humanos e o último, aquele que nasceu no território brasileiro, havendo neste sentido uma confusão de terminologias, pois temos os silvestres como nativos e, os domesticados como silvestres, pois estes, não perdem jamais essa qualidade, constituindo crime tê-los sob guarda.

Das leis para a prática, o caminho a se percorrer é longo e árduo, mesmo porque a nossa legislação ambiental é uma das mais avançadas do mundo, no entanto, a nossa realidade, infelizmente, não a acompanhou de forma alguma, tendo em vista a disparidade do poderio econômico, tornando os recursos naturais, muitas vezes, a salvação de muitas famílias brasileiras que não têm o que comer, mas, no entanto, concorre também pelo distanciamento das leis para com a realidade, na escassez de fiscalização para que as mesmas sejam cumpridas, devido aos quadros de funcionários públicos, tanto da esfera federal como estadual, que atuam como fiscais, constituírem a minoria dentro de estruturas governamentais puramente administrativas.

Diante dessa desigualdade de forças, o Brasil está entre os principais países do mundo que comercializam e exportam espécimes da fauna e flora silvestres de forma ilegal. Segundo um levantamento realizado pela organização não governamental denominada Fundo Mundial para a Natureza - WWF, "especialistas das agências governamentais que atuam no combate ao tráfico de animais silvestres calculam que esta atividade movimenta cerca de US$ 10 bilhões/ano em todo o mundo. O volume de animais silvestres oriundos do Brasil representa algo entre 5 a 7% deste total (US$ 500 milhões a US$ 700 milhões). Entre as principais cidades e municípios fornecedores de animais silvestres para os contrabandistas que atuam no eixo Rio - São Paulo destacam-se: (...) o Estado de Mato Grosso, municípios de: Cáceres, Cuiabá e Rondonópolis."1 .

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No Estado de Mato Grosso tanto a caça como o contrabando e a captura ilegal estão à mercê do mais voraz predador do planeta - o homem. O descaso das autoridades governamentais e da própria população é tão expressivo, que se publica em jornais da capital os nomes de caçadores denominados profissionais, sendo que em nosso país esta modalidade (caça profissional) está proibida desde 1967, através da Lei 5.197, de 3 janeiro (art. 2º), constituindo crime com pena de detenção de 18 meses a 3 anos, e multa, conforme prevê a Lei 9.605, sancionada em 12 de fevereiro de 1998.

Nesse Estado a caça amadora também está proibida através de sua Constituição (art. 275), e Lei Complementar n° 38, de 21 de novembro de 1995, que dispõe sobre o Código Ambiental e, antes mesmo desse dispositivo legal existir, foi criada em 1992, uma Delegacia Especializada da Natureza para coibir e repreender aqueles que a praticam. Além desses mecanismos, fora implantada Varas Especializadas e Juizados Ambientais de Pequenas Causas, fundamentais para a salvaguarda da nossa fauna, à exemplo do JUVAM - Juizado Volante Ambiental de Mato Grosso, que vêm prestando relevantes serviços de proteção ao meio ambiente e, conseqüentemente aos animais que fazem parte dos ecossistemas abrangidos em sua área de atuação.

3. Competência concorrente para legislar sobre fauna e caça

A necessidade de proteção da fauna tem atraído a atenção de todos, quando dados e informações como estas contidas no Relatório da WWF, chegam a ser escandalosas. A situação é gravíssima e deve ser tratada como tal mas, na verdade, o que vêm gerando muita polêmica e discussões acirradas no mundo jurídico é a chamada competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal, para legislar sobre fauna e caça, dispostas no artigo 24, inciso VI, da Constituição Federal, tendo em vista que os estados, seguindo essa orientação, estão proibindo a caça amadora em seus territórios e, para tanto, a matéria está sendo bombardeada pela Associação Brasileira de Caça, com o intuito de criar os famosos parques de caça para o prazer daqueles que detestam finais de semana em Paris, sendo que a caça de subsistência, aquela praticada pelos índios está salvaguardada, bem como aquela realizada para saciar a fome do agente, conforme previsto na Lei 9.605/98, em seu art. 37, inciso I.

A primeira tentativa contra dispositivo constitucional estadual proibindo a caça, deu-se em São Paulo pela Associação Brasileira de Caça, que entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade, sustentando a tese da incompatibilidade do art. 204 da Constituição paulista, que proíbe a caça, sob qualquer pretexto, com o § 1°, do art. 24 da...

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