Certeza do direito versus indeterminação jurídica? O debate entre positivistas e antipositivistas

AutorJ. Alberto Del Real Alcalá
CargoProfessor de Filosofia do Direito, Universidade de Jaén, Espanha
Páginas130-153

Tradução de Julio Pinheiro Faro Homem de Siqueira

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1 Introdução

A polêmica sobre a tese da indeterminação do Direito ocupa boa parte do debate contemporâneo entre positivistas e antipositivistas sobre que teoria jurídica descreve mais satisfatoriamente a realidade do Direito. As posições de umas e outras teorias do Direito sobre a completude e certeza do Direito, por um lado, e sobre a indeterminação jurídica, por outro, podem ser sintetizadas na metáfora a nós legada por H.L.A. HART sobre o Pesadelo e oPage 132 Sonho Nobre1.

A doutrina da “indeterminação do Direito” que defende o positivismo contemporâneo sustenta-se em uma teoria positivista da adjudicação que inclui a tese da discricionariedade judicial. E, claro está, a teoria positivista da adjudicação em sua versão hartiana está conectada com a tese da “separação conceitual entre o Direito e a moral” e a das “fontes sociais do Direito” que, como é conhecido, caracterizam a descrição positivista da realidade jurídica. De modo que para o positivismo contemporâneo a polêmica sobre a indeterminação prejudica grande parte de suas disputas com os antipositivistas. Do mesmo modo, as posições antipositivistas contemporâneas, que têm reduzido em boa medida a teoria do Direito a uma teoria do processo judicial2, advogam pela doutrina da “completude do Direito” afirmando que em algum dos momentos do Direito prevalece sempre por fim sua identificação e certeza para cada caso, diante de uma possível indeterminação que será – se é que ocorre – provisória, embora não faça parte nem das características que descrevem o Direito nem tampouco alcança seu conceito.

Que a polêmica sobre indeterminação e completude-certeza do Direito ocupe o debate entre positivismo e antipositivismo isso o próprio HART o reconheceu em seu Postscript, quando aduziu que “o conflito mais acirrado entre a teoria [positivista que defende] e a teoria de DWORKIN [paradigma do antipositivismo] surge de minha afirmação de que em qualquer ordem jurídica haverá sempre certos casos juridicamente não-regulados nos quais, em algum ponto, o direito não fornece nenhuma solução em nenhum sentido e o direito, consequentemente, é parcialmente indeterminado ou incompleto3”.

Neste texto procuro comparar, e o faço sinteticamente devido à limitação que lhe é própria, os principais esquemas da “doutrina da indeterminação” e da “doutrina da completude” doPage 133 Direito em suas versões mais representativas. Também acrescentarei meu ponto de vista, brevemente, nas conclusões, sobre a transcendência que uma e outra doutrinas podem produzir sobre o rule of law.

2 A “doutrina da indeterminação” do Direito no positivismo contemporâneo: H L.A. Hart

É verdade que os positivistas antigos reconheceram a possibilidade da indeterminação do Direito, “embora tenham esquecido de apreciar sua importância4”. Esta relevância tem a ver com a conexão que o positivismo contemporâneo faz entre a “doutrina da indeterminação” do Direito e a teoria positivista da adjudicação. E, por sua vez, com o vínculo de todas elas com as teses da separação conceitual do Direito e da moral e das fontes sociais do Direito, linhas identificadoras do positivismo jurídico5.

O positivismo jurídico contemporâneo, na versão elaborada por H.L.A. HART, a partir de uma teoria jurídica descritiva6, geral e moralmente neutra, advoga pela “doutrina da indeterminação”. Sustenta que “em todo sistema jurídico haverá certos casos previstos e não regulados pela lei, isto é, casos para os que nenhum tipo de decisão é claramente estabelecido pelo direito e, consequentemente, [nos que] o direito é parcialmente indeterminado ou incompleto7”. Portanto, é a existência destes casos não-regulados que se verifica em todo sistema jurídico – e que HART, utilizando a expressão de DWORKIN, qualifica de “hard cases” (casos difíceis) –, o que leva HART a afirmar que o Direito é parcialmentePage 134 indeterminado ou incompleto8. Conforme o positivismo contemporâneo, a indeterminação deve ser contemplada como um “risco inevitável de toda tentativa de guiar a conduta humana através de regras gerais”, que requer que os juízes exerçam seus poderes legislativos ou de criação jurídica, de caráter “intersticial”, a fim de regular aqueles casos nos que “o Direito existente não acerte ao impor uma decisão como sendo a decisão correta9”. O esquema da doutrina da indeterminação em sua versão hartiana do positivismo leve10 (soft positivism) contém as seguintes teses.

2. 1 A tese da “indeterminação” da regra de reconhecimento

HART passou a considerar, depois da crítica de R. DWORKIN11, que ao lado das regras existem uns modelos (standards) também jurídicos que podem ser denominados princípios e que além dos critérios de identificação de normas que consistem em meros fatos sociais (ou pedigree) ensejam a regra de reconhecimento, esta também suscetível de identificar aqueles modelos e dar conta de sua existência jurídica. Esta versão da regra de reconhecimento, que segundo o soft positivism não teria porque prejudicar a tese da separação conceitual entre o Direito e a Moral, deu lugar, sem embargo, a um debate intenso dentro do positivismo jurídico dividindo-o em correntes doutrinárias. De um lado, o positivismo inclusivo do raciocínio moral no Direito e na regra de reconhecimento, sempre que esta se mantenha como uma convenção social, de acordo com Jules COLEMAN12, Wil WALUCHOV13, Kenneth E. HIMMA14 ou Juan José MORESO15, mantendo Gregorio PECES-BARBA uma posiçãoPage 135 similar, ainda que pertencente à tradição jurídica europeu-continental16. E, por outra, o positivismo excludente ou estrito, que exclui a moralidade como critério de validade jurídica, conforme Joseph RAZ17 ou Scott SHAPIRO18. De todo modo, a questão que se coloca é que os princípios ou valores morais ao apresentarem caráter controvertido, e por serem suscetíveis de acordo ou desacordo e não apresentarem um único significado nem absoluta certeza, se os introduzimos na regra de reconhecimento – como critérios de validade jurídica – eles trazem a incerteza que os caracteriza à própria regra de reconhecimento, e, assim, ao resto do Direito. A consequência é que a regra de reconhecimento pode carrear incerteza sobre os requerimentos do Direito, podendo-se identificar claramente o Direito que é e o que não é Direito. Isto é, incerteza acerca de que condutas estão permitidas e quais estão proibidas aos cidadãos. HART estimou isso como algo inevitável, pois “a exclusão de toda incerteza [na regra de reconhecimento] a qualquer custo para outros valores não o fim que tenha sempre sido contemplado para a regra de reconhecimento19”.

2. 2 A tese da “indeterminação” das regras e princípios do Direito

Não apenas podem ser suscetíveis de indeterminação os critérios de identificação do Direito, como também as próprias regras particulares – na zona de incerteza – identificadas já como Direito, além dos princípios – controvertidos por si sós por causa de sua pluralidade de significados – que integram a realidade do Direito20. Ocorre que quando uma regra se aplica a um caso particular, se o Direito não fornece resposta em nenhum sentido para a resolução do caso, então há que reconhecer que o Direito se mostra parcialmente indeterminado. HART nos disse, neste sentido, que as regras contêm uma “penumbra de incerteza” que éPage 136 controvertida21. Sua metáfora popular na teoria jurídica do século XX sobre o “núcleo de certeza” e a “zona de penumbra” vem assinalar, respectivamente, e assim o tem admitido abertamente desde então o positivismo jurídico contemporâneo, as zonas de Direito determinado e de Direito indeterminado que convivem juntas no âmbito de significação das regras do Direito. Isto da a todas as regras “um quê de vagueza ou ‘textura aberta22”, e leva conseguintemente incerteza e indeterminação tanto à regra de reconhecimento como às regras particulares23. Para a doutrina da indeterminação, colocar as situações particulares dos casos sob os riscos gerais das regras impossibilita eliminar esta dualidade de um núcleo de certeza e uma penumbra de dúvida, com as consequências correspondentes que isto tem no âmbito da aplicação e interpretação do Direito. Sobretudo, na hora de identificar e determinas os direitos e deveres legais dos cidadãos.

Contudo, onde se tem discutido bastante a doutrina da indeterminação é nos “hard cases”. Aqui se tem concentrado especialmente o debate entre positivistas e antipositivistas contemporâneos, pois nesta classe de casos o Direito é “fundamentalmente incompleto: não proporciona nenhuma resposta à questão colocada”, tanto que nos encontramos ante “casos juridicamente não regulados”. Como os tribunais resolvem os hard cases? O positivismo jurídico contemporâneo dirá que para os tribunais poderem pronunciar uma decisão “têm [necessariamente] que exercer a restrita função jurídico-criadora [...] [da] ‘discricionariedade judicial’24”.

2. 3 A tese da “indeterminação” da “estrutura de dever” dos juízes no Estado de Direito: Teoria positivista da adjudicação e...

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