A cidade atraves do olhar metodologico de Benjamin /The city through Benjamin's methodological look.

AutorAzevedo, Fatima Gabriela Soares de

Introdução

Para Walter Benjamin, as cidades constituíam temática privilegiada para a análise materialista da história. Nas cidades, o tempo da modernidade se instaura, acelera as vidas, desumaniza. Isto não quer dizer que a cidade é um cenário para Benjamin. A vida na ocupação capitalista do urbano é também a própria cidade. Os escritos do autor alemão sobre a cidade de Paris tornaram-se exemplo para análises que seguem a abordagem benjaminiana.

Baudelaire foi o poeta que conduziu Benjamin em versos cujo "aspecto decisivo (...) é o substrato social, moderno, do 'idílio fúnebre' da cidade". (BENJAMIN, 2009, p.47). É assim que Benjamin adentra nas entranhas de Paris, embora o visitante destaque que no poeta francês não há descrição da cidade (BENJAMIN,2011c, p. 167). Baudelaire foi o guia que conduziu Benjamin também através de temporalidades não vividas e, portanto, por problemas histórico-políticos que não foram testemunhados corporalmente por sua vivência. A temática da vida urbana os une e Benjamin extrai nomes (1) e conceitos dos textos baudelairianos (flâneur, satanismo, jogo, memória, tempo, progresso, mulheres (2)) para se encontrar com o francês no momento e no espaço em que "A aparência se precipitava sobre as mercadorias" (BENJAMIN, 2011c, p.160).

A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica; as teses Sobre o conceito de história e os trabalhos sobre Baudelaire (no Brasil os textos estão reunidos nos livros Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo e Baudelaire e a modernidade) são apontados por Rolf Tiedemann na Introdução à edição alemã das Passagens como trabalhos que "testam" e explicam a metodologia da obra que ocupou o alemão por mais de uma década antes de sua morte. Inacabadas, as Passagens pretendiam demonstrar uma maneira de, a um só tempo, reunir a reflexão sobre o materialismo histórico em um texto com plena visibilidade (TIEDEMANN, 2009, p. 14-15) (3). É certo que ali está um esboço - em sentido benjaminiano de técnica historiográfica- "um hipertexto com milhares de fragmentos" (BOLLE, 2009a, p.219) e não uma obra com título e ponto final.

As Passagens constituem o material fundamental deste artigo (especialmente as partes N, O e P), mas mesmo que ele se convertesse em uma análise pura da obra, não poderia deixar de recorrer ao pensamento de Benjamin como um todo, a fim de evitar desrespeito e má interpretação do próprio autor. Assim, os textos já citados e outros autores que trabalham a teoria benjaminiana vão aparecer para interpelar o urbano sob a metodologia materialista histórica.

Willi Bolle é o responsável pela organização da tradução brasileira das Passagens. No posfácio foi reconhecido o potencial do trabalho de Benjamin para os estudos das megacidades latino-americanas (BOLLE, 2009b, p. 1141-1165). Poucos anos depois, Bolle analisa a capital paraense, Belém, com a metodologia usada por Benjamin para ler Paris nas Passagens. (4) O texto de Willi Bolle Paris na Amazónia: um estudo de Belém pelo prisma das Passagens traz a seguinte sistemática: identificação da estrutura de análise da cidade de Paris por Benjamin, destacando as respectivas categorias; proposição da plausibilidade da utilização da metodologia em função de circunstâncias histórico-políticas; apontamento dos equivalentes conceituais na cidade de Belém; análise de Belém propriamente dita (BOLLE, 2012. p 291-319). Este trabalho seguirá caminhos divergentes, mas sem prescindir das identificações propostas por Bolle, que têm o potencial de evidenciar aquilo que ganhou destaque em Benjamin e que, portanto, não pode ser negligenciado.

Não só nos trabalhos que envolvem Paris aparecem conceitos relevantes para o estudo do espaço do capitalismo por excelência. O estado de exceção benjaminiano é categoria fundamental para pensar a segurança pública das cidades e avaliar o estado da arte do Estado democrático de direito no mundo. Sobre a crítica do poder como violência é outro texto seminal que, embora não diretamente destinado à compreensão da evolução do conceito de cidade para o autor, torna-se fundamental para entender a relação entre poder, violência e estado dentro do capitalismo. Assim, a consulta ao texto se torna inevitável para entender a dinâmica do desenvolvimento capitalista dentro e fora das cidades.

Comparativamente, no Brasil há menos estudos sobre a cidade capitalista na perspectiva de Benjamin do que estudos que o evocam para tratar de literatura, análise de obras de arte, filosofia e a relação entre história e memória. O pequeno número de análises orientadas pela metodologia benjaminiana sobre a cidade, porém, parece estar em desacordo com o espaço reservado ao tema pelo próprio em suas reflexões. É certo que os assuntos não estão apartados no pensamento de Benjamin, como já exposto, e também que o autor dedicou esforço intelectual ao tema que só foi interrompido pela própria morte.

A análise da interseção direito e cidade a partir de Walter Benjamin permite construir estratégias amparadas na memória, no conhecimento de si e do outro, em alternativa ao modelo liberal de direito à cidade concebido pelo positivismo. O direito, como ordenamento jurídico, reifica as condições de exploração do espaço. O sujeito de direito não é concreto e exclui, em sua concepção e no mundo, extensas coletividades de sujeitos históricos, que são conhecidos na cidade por rastros, vestígios e memórias.

O estudo da metodologia benjaminiana da análise do urbano orienta a necessária crítica do direito positivo ao desnudar as relações sociais sobre as quais são forjadas as cidades modernas. A estruturação do direito como narrativa resultante de disputas de memória é identificação antecedente ao ato de nomeação dos invisíveis, dos não contemplados pelas garantias formais. A abordagem benjaminiana das cidades permite reabilitar seus deserdados, conhecê-los e perceber a profundidade e as limitações do alcance do controle da vida pelo direito.

  1. O método benjaminiano para ler a cidade moderna

    A pergunta preliminar ao delineamento de hipóteses sobre o método de Benjamin para o estudo da cidade moderna é se há um método em Benjamin. A resposta não é uníssona entre os comentadores, especialmente porque não se trata de um sociólogo ou antropólogo de formação. Então a pergunta principal retorna, adornada de outros conceitos: ainda que Benjamin não tenha sido um metodólogo, seus escritos trazem rastros ou lampejos para a análise da cidade moderna? Antônio Carlos Gaeta vai aos principais benjaminianos no Brasil para elucidar a questão:

    Para autores como Joël Lefebvre (1994), as análises de Benjamin apresentam graves distorções e não podem servir de caminho. Já Willie Bolle (2000) identifica particularidades significativas em suas análises. Sérgio Rouanet, Olgária Matos, Jeanne Marie Gagnebin e outros, tendem a afirmar um método. Segundo Sérgio Paulo Rouanet (1984), Walter Benjamin trabalha com uma clara preocupação metodológica desde os primeiros escritos, em especial A Origem do Drama Barroco Alemão. As considerações epistemológicas e metodológicas benjaminianas, presentes na introdução epistemológica daquele trabalho, estariam além da preocupação exclusiva com o drama barroco. Seriam apontamentos sobre teoria do conhecimento e que se prolongariam por todos os escritos benjaminianos. (GAETA, 2005, p.2) A conclusão acertada de Gaeta, em concordância com Sergio Paulo Rouanet, é a de que existe um método em Benjamin, exposto enigmaticamente em considerações ao longo de sua obra. Embora não haja um capítulo único sobre a temática, um dos textos que traz de modo mais estruturado a preocupação de Benjamin com o método é o seu último escrito: as teses Sobre o Conceito de História. Além da discussão epistemológica, há ali o enfrentamento da barbárie e da cultura como "unidade contraditória" (LÖWY, 2005, p.75) por meio da articulação entre a metodologia materialista histórica e o messianismo. Especificamente a tese XVII (5) é aquela em que aparece a estruturação da metodologia benjaminiana para a análise das cidades. Segundo Löwy, ali está exposto o método utilizado por Benjamin na análise de Baudelaire:

    Trata-se de descobrir em As flores do mal uma mônada, um conjunto cristalizado de tensões que contêm uma totalidade histórica. Nesses escritos, desarraigados do curso homogêneo da história, encontra-se conservada e reunida toda a obra do poeta, nesta, o século XIX francês, e, nesse último, "todo o curso da história". A obra "maldita" de Baudelaire guarda o tempo como uma semente preciosa (LÖWY, 2005, p.132-133). Não à toa Benjamin dá o nome de Paris, a capital do século XIX ao texto de apresentação de estrutura e conteúdo do trabalho das Passagens (6). Jeanne-Marie Gagnebin destaca igualmente os imbricamentos de tempo, arte e história (na/com a imagem) como elemento central da perspectiva benjaminiana, que tem na cidade moderna a chave da mudança temporal e social capitalista. Em suas considerações, que remetem a Simmel, a tese XVII aparece com o exemplo prático da (des)articulação da arte e da aura.

    [O]desenvolvimento da grande cidade moderna acarretou mudanças essenciais para o sentido da visão, especificamente no que diz respeito a essa comunhão e comunidade de olhares recíprocos. Em primeiro lugar, a vista é submetida a um excesso de estímulos em detrimento dos outros sentidos, que não conseguem mais acompanhar e explicitar o que foi visto; ela se torna um olhar sempre à espreita. Em segundo lugar, o olhar recíproco e confiante, base da atitude contemplativa, é ameaçado de extinção, justamente por esse excesso de visão. A famosa desauratização da arte contemporânea, na hipótese de Walter Benjamin, remete a essa transformação de um olhar recíproco numa visão simultaneamente saturada e sempre ameaçada, sempre à espreita. A "aura" significaria, pois, não só a auréola do poeta, agora caída no chão, como no conhecido poema em prosa de Baudelaire ("Per-te d'auréole"), mas também a expectativa de um horizonte transcendente no...

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