Cinema e direitos humanos (das mulheres): sentir e pensar potencializados/Cinema and human rights (of women): feeling and thinking empowered.

AutorAlmeida, Gabriela Perissinotto de
  1. Introdução

    O relatório Direitos Humanos nas Américas, elaborado pela Anistia Internacional (2019), apontou que, no Brasil, têm sido adotadas medidas administrativas e legais que colocam em prática uma retórica abertamente contrária aos direitos humanos, disseminada por governos municipais, estaduais e no âmbito federal. Essas abordagens políticas têm afetado diversas searas, dentre as quais questões ambientais, indígenas e pertinentes aos direitos das mulheres.

    O recrudescimento de discursos e práticas autoritárias que desconsideram e violam os direitos humanos, associando-os a "direitos de bandidos", revigora a necessidade de discutir essa temática como meio de conter o avanço da extrema direita no país. Uma forma de fazê-lo é por meio da educação em diálogo com a arte, utilizada como instrumento pedagógico e de crítica social.

    Neste artigo, relatamos a experiência do Ciclo de Estudos e Cine-debates entre o DiHCA (UNIFAL) e o NADIR (USP), realizado, virtualmente, no segundo semestre de 2020, pelo Coletivo Direitos Humanos, Cinema e Afetos (DiHCA), da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), em parceria com o Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), da Universidade de São Paulo (USP), com destaque para o terceiro dos quatro encontros em que se debateu a violência de gênero (1).

    Inicialmente, teceremos algumas reflexões acerca do cinema como recurso para a difusão dos direitos humanos, observando sensibilizações teórico-políticas que tal atividade pode promover tanto em estudantes de graduação quanto de pós-graduação. Na sequência, descreveremos, brevemente, o projeto de extensão em que se inseriu esse ciclo e como se fez a parceria DiHCA-NADIR. Por fim, narraremos a experiência específica do terceiro encontro do ciclo de debates, quando discutimos violência de gênero, com base no documentário brasileiro Silêncio das Inocentes (2) (2010, 52'), que aborda a aplicação da Lei no. 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP), por meio de depoimentos de vítimas e especialistas no tema da violência doméstica e familiar contra mulheres.

    De modo geral, esperamos que o artigo demonstre a potência de um projeto de extensão resultante da parceria entre um coletivo e um núcleo de pesquisa, unidos a fim de explorar o cinema como recurso pedagógico na difusão dos direitos humanos entre estudantes universitárias(os) (3). De forma mais específica, acreditamos que o texto poderá fomentar o uso do documentário Silêncio das Inocentes em discussões sobre violência contra mulheres e a Lei Maria da Penha, de modo a contribuir para o enfrentamento dessa modalidade de violência estrutural.

  2. O cinema como recurso pedagógico na difusão dos direitos humanos

    Em 2019, foi lançado o livro Os advogados vão ao cinema: 39 ensaios sobre justiça e direito em filmes inesquecíveis (NEVES, 2019), no qual justamente 39 filmes, considerados campeões de bilheteria, são comentados por advogadas(os), magistradas(os) e professoras(os) universitárias(os). O organizador afirma:

    É certo que assistir a um filme constitui uma experiência individual e intransferível; mas o intercâmbio de opiniões sobre eles tornou-se uma viva atividade social. Muitas vezes conhecemos melhor as pessoas depois de ouvir suas opiniões sobre algum filme. (...). Temas jurídicos são constantemente levados à grande tela, de forma explícita, implícita ou mesmo subliminar. Talvez por isso os filmes sejam tão interessantes para os operadores do Direito (idem: 10-11). O cinema, segundo Sylvia Caiuby Novaes (2009: 18), é um "campo de expressão imagética de valores, categorias e contradições de nossa realidade social", tal como podem ser outras formas expressivas. Contudo, diferentemente da linguagem verbal, seja oral ou escrita, concebida como um processo de descrição, a linguagem imagética, na qual se insere a cinematográfica, viabiliza o conhecimento por familiarização (MACDOUGALL, 1997: 286; CAIUBY NOVAES, 2014: 58), pois "condensa sentido, dramatiza situações do cotidiano, representa - reapresenta - a vida social" (CAIUBY NOVAES, 2009: 19). Mais do que isso, "as imagens são formas que pensam" (SAMAIN, 2012: 33), adquirirem agência própria e operam para além de representações da "realidade". Ao serem veiculadas, ganham vida e podem admitir diferentes interpretações, de acordo com a bagagem e o repertório de quem as vivencia.

    Partimos, assim, do pressuposto de que a linguagem cinematográfica, quando combinada com a da ciência, potencializa textos e reflexões, de modo que, juntas, elas mobilizam mais sentidos, podendo evocar sentimentos, lembranças e sensações que dificilmente um texto acadêmico, sozinho, permitiria (CAIUBY NOVAES, 2014).

    Não poderia ser diferente com os grandes debates que estão no cerne das normas, conceitos e conflitos pertinentes aos direitos humanos, pois neles residem questões-chave e transversais a todas as áreas do conhecimento, tais como o que se entende por humanidade, pessoa e dignidade, entre tantas outras.

    Não por acaso, secretarias de governo, organizações da sociedade civil e muitos coletivos que militam em prol dos direitos humanos, inclusive sediados em universidades, promovem, há anos, "mostras de cinema e direitos humanos" (4). A depender de quem está à frente dessas iniciativas, alguns filmes são selecionados em detrimento de outros, o que justamente indica disputas políticas que sempre marcam o campo da difusão e mesmo o da compreensão dos direitos humanos.

    No que tange à educação em/para os direitos humanos, muitas têm sido as experiências de recorrer ao cinema como estratégia pedagógica e de sensibilização teórico-política. Algumas atravessam o ensino infantil, passam pelo público jovem e alcançam adultos (PEREIRA; SILVA; ABRANTES, 2018), enquanto outras se voltam especificamente para estudantes do ensino médio (BERTI; CARVALHO, 2013). Trata-se de uma abordagem cada vez mais adotada também em cursos de graduação em direito, seja por meio de núcleos de estudo e/ou projetos de extensão.

    Alguns exemplos dessas práticas extensionistas, desenvolvidas em diferentes pontos do Brasil, são: o Projeto Espreita, criado em 2006 na Universidade Federal de Santa Catarina (ZAMBONATO; SOUZA, 2010); Direito em Tela, desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais; Cine Legis, do curso de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Direito, Cinema e Justiça--CINEJUS, realizado no Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba; e Ecocine debates: cinema e direito ambiental, desenvolvido no âmbito da Universidade Federal de Goiás (MARTINEZ, 2015). Destacamos, ainda, o cineclube intitulado Cine Jurídico, realizado na Faculdade de Ciências Humanas do Sertão Central, situada em Salgueiro, município de Pernambuco, que visou à promoção da educação em direitos humanos por meio do cinema, conforme relatou Synara Veras de Araújo (2015).

    Neste artigo, apresentamos um projeto de extensão, cujo objetivo também foi promover debates relativos aos direitos humanos com a peculiaridade de reunir um coletivo e um núcleo de pesquisa de duas universidades do sudeste, não vinculados a faculdades de direito, conforme passaremos a narrar.

  3. O Ciclo de Estudos e Cine-debates DiHCA-NADIR

    O Coletivo Direitos Humanos, Cinema e Afetos (DiHCA) é um projeto de extensão vinculado à Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), situada no Sul de Minas Gerais. Aprovado no início de 2019, ele é coordenado pela professora Carmem Lúcia Rodrigues, uma das autoras deste artigo, e foi idealizado com o intuito de criar espaços de reflexão e sensibilização da comunidade universitária, assim como do público em geral, acerca dos direitos de grupos social e historicamente mais vulneráveis, por meio de uma série de cine-debates e rodas de conversa.

    Após oito meses de estudos a respeito do eixo temático "Direitos Humanos e Diversidade Humana", o DiHCA articulou uma equipe de estudantes de graduação da UNIFAL, matriculadas(os) nos cursos de Ciências Sociais, História e Letras, três professoras-pesquisadoras, além de uma advogada e um advogado que, de maneira conjunta, organizaram, dentre outras atividades, a Primeira Mostra Universitária de Cinema e Direitos Humanos. O evento contou com a parceria da Prefeitura Municipal de Alfenas, que subsidiou boa parte dos custos da Mostra realizada na sede da UNIFAL em outubro de 2019 (5).

    Essa atuação, dentre outras, tornou reconhecida a contribuição do DiHCA para o fortalecimento dos direitos humanos em Alfenas e na região do sul de Minas Gerais. Além do convite para a participação do coletivo na "Semana da Diversidade", em 2019, que precedeu a Parada do Orgulho LGBT, a equipe do coletivo foi convidada a compor uma mesa do "I Encontro Regional de Direitos Humanos da OAB/MG no Sul de Minas". No início de 2020, o grupo se uniu a professoras indígenas de uma aldeia situada em Caldas-MG para contribuir com a elaboração da obra "Livro dos saberes dos Kiriri do Acré" (no prelo).

    Em meados de 2020, já em plena pandemia, o DiHCA estabeleceu uma parceria com o Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR), do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (DA-FFLCH-USP), coordenado por outra das autoras deste texto, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, a fim de, juntos, realizarem quatro cine-debates.

    O NADIR, criado em março de 2008, tem por missão acolher pesquisadoras(os) que estão em diversos níveis de formação e cujos temas de interesse transitam pela área denominada antropologia do direito, permitindo-lhes, em reuniões quinzenais, trocar ideias, incrementar leituras, enriquecer e desenvolver projetos, o que fortalece a própria área que, no Brasil, encontra-se em franca expansão. O núcleo também fomenta a divulgação de trabalhos de seus membros em publicações e encontros científicos, estabelece interlocuções e parcerias com colegas de outras instituições (acadêmicas e jurídicas) e criou, em 2009, o Encontro Nacional de Antropologia do...

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