Class actions e reformas processuais: um ponto de reflexão para as ações coletivas no Brasil

AutorAndré Vasconcelos Roque
CargoAdvogado no Rio de Janeiro. Mestrado em Direito Processual na UERJ.
Páginas86-124

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1. Introdução

Planeta Terra. Século XXI. O sonho do homem chegar à Lua já foi realizado há quase cinqüenta anos atrás. A física e a medicina, dentre outros ramos do conhecimento, esperimentaram um progresso jamais visto no século que se passou. Surgem outras áreas do conhecimento, cada vez mais importantes, como a informática e a biogenética. As telecomunicações exercem papel essencial em uma sociedade globalizada. Os mais variados bens de consumo – desde simples camisas até televisores de plasma – são comercializados aos milhares ou milhões, nos quatro cantos do planeta. Um dos fenômenos típicos do mundo contemporâneo é a massificação. Não se tem aqui a pretensão de definir um conceito tão vago e multifacetário. De todo o modo, mesmo sem definir o termo, não é preciso muito esforço para perceber que, nas últimas décadas, as relações jurídicas se intensificaram, não apenas em termos quantitativos, como sobretudo qualitativos. Nos dias de hoje, não é difícil imaginar que um contrato – símbolo por excelência da autonomia privada – possa afetar a situação de milhões de pessoas. Pense-se, por exemplo, em um contrato de concessão de serviços de telefonia, modificando completamente o regime de cobrança das contas de telefone em um país inteiro, como recentemente aconteceu no Brasil.

A intensificação das relações jurídicas no mundo contemporâneo, dentre outros fatores2, converte o Poder Judiciário em uma instância de solução de conflitos de toda a espécie, desde litígios locais envolvendo apenas dois vizinhos, até uma demanda global que interessa a um país inteiro, quando não vários países. O processo civil precisava se ajustar às transformações vivenciadas na modernidade.

O processo civil deu várias respostas ao crescimento da demanda por justiça, com variados graus de efetividade. Com efeito, a solução de uma questão tão complexa Page 87como o acesso à justiça no mundo contemporâneo não poderia se dar através de uma única medida milagrosa3. Nos últimos anos, além das inúmeras reformas no Código de Processo Civil brasileiro, foram promulgadas diversas leis extravagantes sobre as mais diversas matérias, tais como os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei 9.099/95), a arbitragem (Lei 9.307/96) e, mais recentemente, as súmulas vinculantes (Lei 11.417/06) e a informatização do processo judicial (Lei. 11.419/06).

Nesse contexto, uma das respostas mais importantes do processo civil no Brasil à intensificação e massificação das relações jurídicas foi a introdução na legislação das chamadas ações coletivas4, ou seja, ações em que um representante ingressa em juízo na defesa de interesses ou de direitos que pertencem a um grupo de pessoas, determinável ou não5. Desde a promulgação da lei que regulamentou a Ação Popular (Lei 4.717/65), passando pela Lei da Ação Civil Pública (Lei 7.345/85), pela Constituição da República de 1988 e, finalmente, pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), as ações coletivas foram sendo progressivamente sistematizadas em nosso país, regulamentando a tutela dos interesses e direitos supra-individuais6.

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Nada obstante, há ainda muito a se fazer. Mais de vinte anos se passaram desde a promulgação da Lei da Ação Civil Pública, revelando méritos e algumas dificuldades. Uma das dificuldades observadas tem sido o longo tempo de tramitação das ações civis públicas7, muito embora se trate de um problema verificado também em outras áreas do processo civil, inclusive em outros países8. A questão, portanto, não pode ser imputada a uma suposta deficiência do sistema de tutela coletiva brasileiro, mas sim a outros fatores estruturais, cuja análise está fora dos objetos do presente estudo.

Outros problemas práticos têm sido observados quanto à conexão, continência e prevenção, institutos que ainda não foram regulados satisfatoriamente para os processos coletivos. A relação entre processos individuais e coletivos também tem gerado enormes dificuldades, potencializada pelo fato de que o legislador brasileiro não adotou nenhum dos dois sistemas de vinculação utilizados no Direito Comparado (opt-in ou opt-out)9.

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Para superar as dificuldades e deficiências observadas nos últimos anos, foram elaborados alguns anteprojetos de reforma das ações coletivas no Brasil. No âmbito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), sob a coordenação da Professora Ada Pellegrini Grinover, foi elaborado um primeiro Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos. Um segundo Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coletivos, resultado de uma reestruturação ampla do primeiro anteprojeto, foi elaborado na esfera dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estácio de Sá (UNESA), sob a coordenação do Professor Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. Os dois anteprojetos foram encaminhados ao Ministério da Justiça e ainda estão em fase de discussão.

O nosso sistema de tutela coletiva atualmente em vigor, guardadas as devidas proporções, se inspirou nas class actions norte-americanas10. Da mesma forma, os dois anteprojetos supracitados também foram influenciados pelo modelo americano11. No entanto, também nos Estados Unidos houve reformas nesta matéria e não foram poucas. Em 1998, foi aprovada uma alteração na Regra 23 das FRCP12 (Federal Rules of Civil Procedure), que permitiu a interposição de recurso contra as decisões interlocutórias de certificação, ou seja, decisões em que se aprecia os requisitos de admissibilidade para a propositura de uma ação coletiva. No ano de 2003, a Regra 23 das FRCP foi novamente alterada, dessa vez para detalhar o procedimento de aprovação de acordos e de fixação dos honorários advocatícios nas class actions.

Finalmente, no início de 2005, foi aprovada a mais importante das reformas das class actions norte-americanas desde 1966, quando a Regra 23 das FRCP ganhou a sua configuração atual13. Várias modificações foram introduzidas no United States Code14Page 90(USC) por uma lei federal designada de Class Action Fairness Act (CAFA)15. A Regra 23 não sofreu nenhuma alteração, no entanto. Segundo se depreende de sua Seção 2, o CAFA tem por objetivo coibir alguns abusos observados naquele país nos últimos anos, em especial a certificação indevida de ações coletivas nas justiças dos estados-membros, julgamentos parciais em determinadas cortes estaduais, fixação abusiva de honorários de advogado e aprovação de acordos sem a tutela adequada dos interesses envolvidos.

O presente estudo tem o escopo de descrever a experiência vivenciada no direito norte-americano com a última reforma processual no campo das class actions e discutir, ainda que de maneira bastante sintética, em que medida isto poderá ser aproveitado para o aperfeiçoamento do nosso sistema de tutela coletiva, tendo em vista não apenas a lei em vigor, mas principalmente os dois anteprojetos de Código Brasileiro de Processos Coletivos elaborado no âmbito da UERJ/UNESA.

O plano de estudo seguirá três partes bem definidas. Primeiro, se fará uma breve descrição do modelo norte-americano das class actions e das inovações introduzidas na última reforma através do CAFA. Depois, o modelo brasileiro será analisado em pontos específicos, justamente aqueles que foram objeto de reforma pelo legislador americano. Finalmente, será discutida a experiência norte-americana, seus limites e possibilidades para a evolução do direito processual em nosso país.

2. Uma breve descrição das class actions norte-americanas

As class actions se constituem16 no principal instrumento de tutela coletiva do direito norte-americano17. Conceitualmente, podem ser caracterizadas como uma Page 91ação coletiva, em que um representante ingressa em juízo para a defesa de interesses ou de direitos que pertencem a um grupo de pessoas, determinável ou não18. No entanto, as class actions possuem algunas características singulares, que agora serão analisadas.

Em primeiro lugar, o representante que ingressa em juízo normalmente é uma pessoa física que tem interesse próprio no resultado da ação coletiva. Este é o primeiro ponto em que as class actions norte-americanas se distanciam do modelo brasileiro em vigor. No Brasil, as ações coletivas são ajuizadas ou pelo Ministério Público19 ou por órgãos públicos ou, ainda, por associações. Os dois anteprojetos elaborados na USP e na UERJ/UNESA introduzem profunda alteração na matéria, atribuindo ao indivíduo a legitimidade para propor ações coletivas, desde que verificada a sua representatividade adequada20 no caso concreto.

No Estados Unidos, a situação é inversa. O indivíduo possui ampla legitimidade para propor uma class action, observados os requisitos de admissibilidade previstos na Regra 23 das FRCP que serão a seguir analisados. Por outro lado, os órgãos públicos e associações enfrentam algumas restrições para ingressar em juízo com esse tipo de ação. Algumas cortes, por exemplo, permitem que os órgãos públicos ajuízem uma ação na defesa do interesse de seus cidadãos postulando apenas tutelas de natureza declaratória ou injuntiva, mas não indenizatória21, salvo autorização legislativa expressa em sentido contrário. A mesma espécie de restrição se aplica também às associações22.

Uma segunda característica própria das class actions norte americanas é que se exige necessariamente a definição de uma classe na petição inicial. A definição de uma classe irá determinar o alcance da decisão judicial na ação coletiva, ou seja, quem ficará sujeito aos seus efeitos. Embora esse não seja um requisito de...

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