A colisão entre normas coletivas e direitos fundamentais

AutorMaurício Matsushima Teixeira
CargoBacharel em Direito pela USP; Especialista em Direito do Trabalho (pós-graduação lato sensu) pela USP
Páginas186-196

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1. Introdução

Se o direito não passa da vontade da classe burguesa erigida em lei, vontade cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de existência da própria burguesia1 e que “o Direito surge para camuflar, ocultar os con?itos, visa conter a classe trabalhadora da revolução”2, aparentemente essa face do direito seria contida pela aplicação integral dos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, com o intuito de igualizar oportunidades, amparando os desfavorecidos3. Entretanto, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho parece frustrar os interesses dos trabalhadores ao interpretar as normas coletivas e sua colisão com princípios e normas constitucionais, permitindo a derrogação de direitos assegurados pelo texto constitucional pela via da negociação coletiva, servindo o Direito, como previu Marx, como mero biombo da classe dominante.

2. A norma coletiva, sua natureza jurídica e interpretação

Quando se pretende discutir a hierarquia e o con?ito de normas, a primeira questão que deve ser respondida é o que é norma ou enunciado normativo4? Tercio Sampaio Ferraz Júnior indica que a questão não é, nem nunca foi de fácil solução, diante de seu caráter zetético5, tratando-se de uma questão aberta que se renova ao longo do tempo6. Positivistas a?rmarão que as normas são o fundamento do qual outras normas retiram sua validade e força coercitiva, ou seja, o Direito nada mais seria que “uma ordem normativa da conduta humana, um sistema de normas que regulam o comportamento humano”7.

Para Alf Ross, uma norma é “uma diretiva que corresponde a certos fatos sociais de forma tal que o modelo de conduta expresso na norma (1) é geralmente seguido pelos membros da sociedade, e (2) é encarado por eles como vinculante (válido)”. Segundo este entendimento, somente normas válidas ou existentes seriam consideradas normas, sofrendo críticas de Alexy8, já que deveria ser possível distinguir o sentido da norma de sua validade, optando por uma conceituação semântica de norma.

Miguel Reale de?ne norma como “uma estrutura proposicional enunciativa de uma forma de organização ou de conduta, que deve ser seguida de maneira objetiva e obrigatória”, ou seja, seu conteúdo pode ser enunciado de mais de uma forma, de acordo com a integração da norma no sistema jurídico, ainda que contra a vontade dos obrigados, aproximando-se da ideia de Alexy que entende a norma como o signi?cado de um enunciado normativo, que expressa algo que deve ser9, como no conceito de Reale.

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A definição legal10 de Convenções e Acordos Coletivos parece não deixar dúvida sobre seu caráter normativo11, entretanto, o Supremo Tribunal Federal segue aplicando a Súmula n. 45412 para negar seguimento a Recursos Extraordinários que tentam discutir a constitucionalidade de cláusulas norma-tivas13, considerando estes instrumentos normativos meros contratos, posicionamento que é seguido também pela Procuradoria-Geral da República14.

Ao decidir neste sentido, o Supremo Tribunal Federal ignora a de?nição legal de convenção ou acordo coletivo prevista no art. 611 da Consolidação das Leis do Trabalho e toda a construção cientí?ca que, ao longo de anos, tratou da natureza jurídica das normas coletivas. Remontam ao início do século XX as teorias que tentaram explicar as normas

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coletivas sob o enfoque civilista adotado pela Corte Constitucional brasileira, já que naquele momento vigorava um modelo jurídico típico do estado liberal em que o direito positivo era elevado a uma condição sacra, já que a regra deveria necessariamente ser derivada de outra regra sempre decorrente da produção estatal, vivia-se um momento em que se sustentava o mito do controle social exercido pelo Direito. O modelo de interpretação vigente era o da hermenêutica de bloqueio, atrelada à teoria da norma jurídica, entendendo a lei como ferramenta de tutela da liberdade individual, ou seja, tutelava-se o indivíduo contra o autoritarismo das maiorias, do indivíduo contra as coletividades, contra os movimentos sociais, não havia espaço para se reconhecer os pactos ?rmados entre patrões e empregados como verdadeiras normas. Partia-se da ideia de que há uma completude do ordenamento jurídico, não era possível alargar o campo de atuação do direito, que era a arena de tutela de direitos individuais. Seria razoável, consequentemente, que as teorias que tentassem explicar o fenômeno das normas coletivas as atrelassem a uma concepção contratual.

Todavia, esse modelo baseado no monismo jurídico não consegue explicar toda a complexidade das normas coletivas, já que se socorre de modelos consagrados pelo Direito Civil para tentar determinar sua natureza jurídica. A principal crítica que pode ser atribuída a esta corrente é o fato de não conseguir explicar o caráter obrigatório das normas coletivas àqueles que não são associados aos sindicatos que ?rmaram os pactos, ou seja, “intentaram conceder formas velhas a um fenômeno novo”15. Dentre as teorias que seguiram a corrente contratualista, destacam-se a teoria do mandato; a teoria da gestão de negócios; a teoria da estipulação em favor de terceiros; a teoria da personalidade moral ?ctícia; e a teoria da representação legal, cada qual apresentando um defeito especí?co em sua formulação, além daquele comum a todas as teorias.

Diante da inconsistência da teoria contratualista, surgem outras teorias para tentar deter-minar a natureza jurídica das normas coletivas, dentre as quais a corrente extracontratual e a corrente normativa, mas aparentemente a que melhor explica a questão é aquela baseada na célebre frase de Francesco Carnelutti segundo a qual a norma coletiva tem “il corpo del contratto e l’anima della legge”16, ou seja “o contrato coletivo é um híbrido, que tem corpo de contrato e alma de lei; mediante o mecanismo contratual desempenha uma força, que transcende o direito subjetivo, e desencadeia um movimento, que vai além da relação jurídica entre as partes”17, que ?cou conhecida como teoria mista.

Se tem alma de lei, a norma coletiva, uma vez ultrapassados os requisitos para seu ingresso no mundo jurídico — discussão que não cabe no âmbito restrito do presente estudo —, deve ser tratada como lei, interpretada como tal, e, caso viole alguma disposição de proteção ao trabalhador, deve ser afastada.

No direito comparado, é possível citar a experiência do Direito Francês, como salientado por Frédéric Géa18, citando um acórdão da Corte de Cassação19 que concluiu pela nulidade de

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uma norma coletiva de não concorrência que não previa qualquer contrapartida pecuniária ao trabalhador20, além disso, em eventual colisão entre as normas coletivas e aquelas mais favoráveis ao trabalhador, as últimas devem prevalecer21. As duas questões foram solucionadas pela mais alta corte de Justiça da França que não trata de questões de fato e tem como incumbência harmonizar a aplicação das leis daquele país.

No Direito português, J. J. Gomes Canotilho informa que “os contratos e acordos colectivos de trabalho têm um valor norma-tivo pelo menos equivalente ao das portarias regulamentares (cf. art. 57º/4 da CRP). Como actos normativos, e na parte em que têm valor normativo, estão sujeitos ao controlo de constitucionalidade”22. Portanto, para o renomado estudioso do Direito Constitucional as normas coletivas devem passar pelo crivo do exame de sua constitucionalidade.

A conclusão não poderia ser outra no Direito brasileiro ante os termos expressos do art. 611 da Consolidação das Leis do Trabalho e diante do caráter abstrato das normas cole-tivas que abrangem a totalidade da categoria, conforme ensinam Amauri Mascaro Nascimento e José Afonso da Silva23. Portanto, a interpretação da validade das normas cole-tivas pode e deve passar pelo controle de sua constitucionalidade diante de sua natureza normativa, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, III, “c”, da Constituição Federal.

Há algum tempo as normas atinentes aos direitos sociais têm sido incluídas no rol das normas constitucionais de direitos fundamentais. O legislador constitucional brasileiro de 1988 não se afastou desta tendência e inseriu os direitos dos trabalhadores no capítulo dos direitos sociais, que foram alocados no capítulo que trata dos direitos fundamentais. Não remanesce dúvida, consequentemente, que todo o rol do art. 7º da Constituição Federal trata de direitos fundamentais que devem ser protegidos contra a abusividade de leis restritivas24, ou no caso em exame, de normas coletivas que pretendam restringir sua abrangência. É importante salientar que esses direitos fundamentais se inserem dentre os direitos, liberdades e garantias que são dotados

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de uma força vinculante25 que os coloca em patamar superior a outros dispositivos da própria Constituição, até mesmo outras normas de direitos fundamentais.

Superadas estas questões, conclui-se que as normas coletivas são dotadas de carga norma-tiva — com força de lei — e resguardam, ou deveriam resguardar, direitos fundamentais, sendo possível se cogitar na análise de sua constitucionalidade. Contudo, emerge uma nova dúvida que deve ser solucionada antes de se tentar discutir o caso concreto: o que são normas de direito fundamental?

Para Alexy, todas as normas expressamente mencionadas no corpo do texto constitucional como normas de direitos fundamentais assim devem ser consideradas, porém não só estas, mas também todas aquelas cuja fundamentação se re?ra a direitos fundamentais, em decorrência daquilo que chama abertura estrutural das disposições de direitos fundamentais que é operacionalizada pela relação de re?namento para a aplicação aos casos concretos e pela “relação de fundamentação entre a norma a ser...

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