A colonialidade da organiza

AutorPalhares, José Vitor
  1. Introdução

    As relações de trabalho são relações de poder. Se tal constatação emerge sem maiores dificuldades dos estudos contemporâneos da organização e regulação do trabalho, em variadas frentes e tradições teóricas, incluindo as críticas, a extensão e formas desse poder não estão necessariamente reveladas em sua integralidade. Especialmente em campos que se reportam diretamente ao universo do trabalho com pretensões de diagnose e normatividade, envoltos pelas próprias formas desse poder. Aí é que se percebe que as relações de trabalho são relações de um poder ainda mais complexo do que revelaram as teorias eurocentradas sobre a exploração do trabalho do século XIX e XX. O objeto do presente estudo é justamente a exploração dos deficits de compreensão que se acumulam em dois desses campos que analisam e estruturam normativamente (ou prospectivamente, em crítica) as relações de trabalho no que diz respeito às formas desse poder que lhes atravessam de maneiras nem sempre visíveis. De um lado, Direito do Trabalho e, de outro, os saberes administrativos aplicados ao trabalho, com destaque para os Estudos Organizacionais. Esses dois domínios centrais para a experiência contemporânea do trabalho serão, aqui, (re)localizados epistemologicamente para que se revele como estes se desenham dentro de marcos de colonialidade, em vista do contexto geopolítico e intelectual da América Latina. A partir daí, pretende-se compreender que funções cumprem e que funções podem cumprir em face do poder que lhes circunda.

    O ponto de partida para tal deslocamento crítico é o fato de a produção de conhecimento latino-americano no campo das Ciências Sociais e Ciências Sociais Aplicadas estar associada, tradicionalmente, a perspectivas eurocêntricas. Tais perspectivas se apresentam como universais e impedem a compreensão de zonas periféricas a partir de análises de realidades próprias e baseadas em epistemes desenvolvidas com o olhar para esse mundo. É o que Lander (2005), Walsh (2007) e Gómez-Quintero (2010) denominam colonialidade do saber, pressuposto teórico primeiro deste artigo. A história do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno, como se verá, tem privilegiado, até o momento, perspectivas de conhecimento e modos de produção de conhecimento colonial/moderno, capitalista e eurocentrado (QUIJANO, 2000), o que também se revela fortemente na compreensão do mundo do trabalho.

    Neste sentido, Grosfoguel (2008) explica que os Estados centrais desenvolveram e desenvolvem estratégias ideológico-simbólicas ao incentivar e privilegiar o saber eurocêntrico em detrimento de outros produzidos em zonas consideradas periféricas, subdesenvolvidas e atrasadas. Já esse outro conhecimento, considerado subalterno, é, por vezes, excluído, omitido e/ou silenciado.

    Nos dois campos do saber a serem discutidos neste artigo o fenômeno da hierarquização epistemológica se revela de modo bastante nítido. Barros e Carrieri (2013) evidenciam, por exemplo, a "americanização" dos saberes administrativos e o repúdio aos saberes organizacionais locais pela academia, ao relatarem a forte influência dos modelos e conhecimentos técnicos importados da Europa e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a perspectiva prevalente do Direito do Trabalho latino-americano, derivado do paradigma jurídico eurocêntrico, ignora as "sujeições interseccionais nas relações de trabalho contemporâneas, provenientes da divisão laboral racial-sexual da América Latina colonial, que articulava concomitantemente servidão, escravidão e trabalho livre conforme raça e gênero" (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 21). Afirma, é certo, um princípio jurídico-normativo de proteção que lhe confere fundamento, sem, contudo, compreender as articulações que dão a tal princípio a formulação e sentidos vividos que têm em relações de trabalho não homogêneas.

    Além disso, tanto nas escolas de Administração quanto nas academias jurídicas ainda se ensinam, muitas vezes, conteúdos não necessariamente situados, não referenciados às práticas sociais, a partir de metodologias estrangeiras e com repetidas referências acríticas à literatura europeia (LEITE; DIAS, 2013). Não que exista um problema intrínseco no diálogo com a produção dos países do norte global. Mas o que se verifica na produção do saber é uma hierarquização, que classifica e despreza nos dois campos aquilo que não seja profundamente arraigado nos modos de pensar dos países centrais. Neste sentido, faz-se necessária não apenas "uma nova maneira de pensar o direito, mas de novas formas de pensamento que descentralizam e pluralizam o que tem sido considerado como jurídico" (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 11). O mesmo, é certo, vale para a produção e transmissão dos saberes em matéria de Administração.

    Desse modo, Colaço e Damázio (2012) e Rosa e Alcadipani (2013) apontam para a necessidade de reconhecermos os efeitos dessa colonialidade presentes no nosso modo de pensar e interpretar o mundo devido a nossa visão colonizada, como as disfunções na produção de conhecimento no Direito do Trabalho e nos Estudos Organizacionais. Assim, tanto autoras e autores nas áreas da Administração (e.g. IBARRA-COLADO, 2006; FARIA; WANDERLEY, 2013; WANDERLEY, 2015; ABDALLA; FARIA, 2017) como na área do Direito do Trabalho (e.g. CRUZ, 2001; GOMES, 2017; MURADAS; PEREIRA, 2018) começam nos últimos anos a explorar criticamente tais relações e a defenderem a descolonização de tais campos de conhecimento. A intenção desse primeiro grupo de textos críticos parece se encaminhar na direção de uma construção, ou uma reconexão, de novas perspectivas de análise que transcendam quaisquer tipos de fundamentalismos e que problematizem aquilo que se pode chamar de uma corpopolítica do conhecimento (GROSFOGUEL, 2007). A presente reflexão se insere nesta linha, que, é preciso notar, se desenvolve ainda de maneira bastante incipiente.

    Portanto, este artigo, de natureza teórica, tem o objetivo central de analisar as contribuições dos estudos descoloniais (1) enquanto uma epistemologia crítica para se compreender a corpo-política do conhecimento em Direito do Trabalho e nos Estudos Organizacionais, diante das pretensões normativas e críticas compartilhadas, em alguma medida, por ambos os campos. No contexto deste artigo, entende-se por estudos descoloniais aqueles estudos críticos e de resistência que descolonizam a epistemologia e os cânones ocidentais eurocêntricos e que levam em consideração o lado subalterno da diferença colonial, isto é, os estudos das periferias, das mulheres, da comunidade LGBTIQ+, de sujeitxs racializadxs/colonizadxs, de trabalhadorxs, dentre outrxs. Contudo, vale ressaltar que não se trata apenas de realizar pesquisas sobre a perspectiva subalterna, mas também de produzir conhecimento sob essa perspectiva e a partir dela (GROSFOGUEL, 2008).

    Na consecução desse objetivo geral, um passo fundamental será o próprio desvelar da colonialidade do trabalho como uma das camadas menos visíveis do poder nas relações do capitalismo do sistema-mundo. Em dimensões que vão desde a dinâmica estrutural da divisão internacional do trabalho, passando pela distribuição da precariedade trabalhista em chaves interseccionais, a revelação do pluralismo de formas de trabalho não reveladas na superfície da descrição do capitalismo, até a própria conformação das subjetividades subalternas no trabalho, pretendemos trazer à discussão esses pressupostos da colonialidade do poder e sua relação com os campos da normatividade administrativa e jurídica do mundo do trabalho. Direito do Trabalho e Estudos Organizacionais são tomados, aqui, em sua simbiose, por se influenciarem mutuamente, mas também por serem produzidos no mesmo pano de fundo de relações de poder. E, finalmente, por reinscreverem nessas relações efeitos normalizadores, que conservam (ou podem alterar, espera-se) as próprias relações de trabalho a partir dos desenhos dessas relações de poder.

    Neste sentido, afirmamos que um outro olhar não somente é possível, como também é indispensável para que situações coloniais sejam problematizadas e descolonizadas no contexto acadêmico e social. Que se coloque num projeto anticolonial. Como pontuado por Quijano (2000, 2013), ainda vivemos em um mundo colonial onde é preciso se libertar das formas reduzidas de se pensar as relações coloniais, a fim de concretizar o incompleto e inacabado projeto de descolonização do século XX. Para tanto, faz-se necessário assumir abertamente "uma geopolítica e uma corpo-política do conhecimento descoloniais como pontos de partida para uma crítica radical" (GROSFOGUEL, 2008, p. 121), a fim de transcender fundamentalismos eurocêntricos e de propor formas alternativas de conhecimento baseadas em uma racionalidade não-eurocêntrica das subjetividades subalternas.

    Tal estudo se justifica por se fazer necessário fortalecer a perspectiva descolonial no Brasil, uma vez que a temática é pouco debatida e problematizada nos Estudos Organizacionais (WANDERLEY, 2015) e no Direito do Trabalho (MURADAS; PEREIRA, 2018) nacionais. Ademais, fortalecer esse movimento enriquece prática e teoricamente tais campos de conhecimento, ao recuperar as diversas vozes historicamente silenciadas daqueles e daquelas que foram marginalizados pelo imperialismo e colonialismo (PRASAD, 2003) e por promover e disseminar saberes mais ajustados às realidades locais (ABDALLA; FARIA, 2017) por meio de uma epistemologia de fronteira. O gesto aqui proposto tem a possibilidade de expandir, então, os limites da crítica já desenvolvida em ambos os campos, ampliando as inteligibilidades (BUTLER, 2003; LERUSSI, 2014) das questões consideradas centrais pela reflexão compartilhada entre saberes jurídicos e organizacionais dissidentes.

    Este artigo está estruturado em cinco seções, a contar desta introdução. A seguir, descrevemos os aspectos tradicionalmente considerados "essenciais" na afirmação do Direito do Trabalho. Na terceira seção, definimos o que chamamos de Estudos Organizacionais e fazemos...

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