Dominando o que você come: o discurso da alimentação

AutorDavid N. Cassuto
CargoProfessor de Direito da Pace University School of Law
Páginas65-86

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1. Introdução

Discussões sobre o tratamento dos animais na indústria global de alimentos muitas vezes se transformam em discussões sobre os direitos dos animais. Tais desvios inutilmente tiram o foco de uma catástrofe social e ambiental que está ocorrendo. Este ensaio tenta reformular o debate global sobre alimentos em uma forma mais direta de reconhecer as nossas obrigações e as necessidades dos bilhões de animais escravizados pelo aparato da indústria de alimentos.

A agricultura industrial remodelou a criação de animais em um processo mecanizado, que ignora os métodos históricos, de interação animal humano/não humano (métodos que evoluíram ao longo de milênios), bem como os costumes éticos. Estes métodos industriais - envoltos no manto da eficiência - tornaramse profundamente enraizados, apesar das claras evidências da

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sua insustentabilidade e inviabilidade. Essa insustentabilidade resulta de uma falha sistêmica inerente ao papel da eficiência na sociedade. A eficiência não é apenas um conceito amoral, desprovido de qualquer elemento normativo, mas aqueles que notam isso, também excluem rotineiramente as externalidades de seus cálculos. Isso torna qualquer equação de custo baseado no risco potencialmente inadequada e enganosa.

Conseqüentemente, utilizar-se da eficiência como um barô-metro ético é falho, tanto hermeneuticamente, como praticamente. Isso nunca deveria ter adquirido um aspecto normativo e nunca deveria ter sido definido para excluir externalidades.

O resultado desse duplo erro, é que o modo predominante de interação humano/animal é insustentável (ineficiente) e eticamente falido. Reestruturar essa interação exigirá o remodelamento do sistema jurídico que permita isso.

A segunda parte do presente ensaio analisa o papel da comunicação na formação das normas legais e sociais e as implicações desse papel para o direito dos animais e a ética. A terceira parte contextualiza o direito dos animais na contemporânea sociedade de risco. A quarta parte analisa como a eficiência tem se transformado de um conceito econômico em uma orientação normativa e discute como essa transformação afetou os animais e a agricultura. Isso rastreia o crescimento da agricultura industrial e o laça ao mal entendido fundamental do conceito de eficiência. O ensaio conclui com algumas reflexões sobre como reformular as noções cotemporâneas de eficiência e ética para explicar o idealismo que deveria ser um componente necessário de comunicação e, conseqüentemente, do direito.

2. Comunicação e Direito

O direito regula as interações entre os membros da sociedade. Ele codifica objetivos comuns que refletem uma visão ideal de uma sociedade justa.1Essa visão aspirante da justiça surge

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através da comunicação. Para a comunicação ser coerente, deve existir uma crença compartilhada entre os interlocutores na possibilidade de consenso e entendimento mútuo. Eles devem evidenciar uma vontade de se chegar a um acordo sobre a verdade/ correção da matéria em discussão.2Esse compromisso comum de acordar forma a base do discurso, que por sua vez, forma a base de normas que, em seguida, são codificadas em direito.

A comunicação dirigida pelo consenso exige uma linguagem comum. As leis que regem a interação humana (propriedade, contrato, criminal, responsabilidade civil, etc) todas cabem dentro da moldura discursiva de metas compartilhadas e compromisso para a perpetuação da sociedade. O Direito Animal, no entanto, não. Não-humanos, os animais não compartilham a língua com os humanos. Consequentemente, eles não participam do discurso humano nem compartilham os objetivos da sociedade humana.

Sem uma visão normativa comum, não há um consenso do qual se criam leis. Animais não são meros participantes relutantes no processo legislativo, eles não participam em nada. Portanto, não faz sentido falar sobre direito dos animais como tal; é mais apropriadamente descrito como um conjunto de leis que regem a forma como os humanos interagem com os animais.

Essa distinção é mais que meramente semântica. A interação humana com animais está dentro do controle humano. Entretanto, do outro lado desse processo - a interação dos animais com os seres humanos - reside inteiramente fora do controle humano. Dado que a perspectiva do animal é tanto variada quanto desconhecida, e que os seres humanos são organismos sociais que interagem com outras espécies, seria compreensível e necessário que os seres humanos criassem um conjunto de regras para regular essas interações. Mas como a essas interações falta qualquer compromisso para com o consenso, as tentativas de dar sentido ao processo são necessariamente contraditórias e ideológicas. Aqui está o que Aristóteles poderia ter descrito como a trágica natureza do direito dos animais. A impossibili-

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dade de comunicação3juntamente com a imutável necessidade pela comunicação, cria uma grande crise de verdades conflitantes que prejudicam a interação significativa.

Apesar deste dilema aparentemente insolúvel, há algumas razões para se ter esperança. Toda a comunicação é sem dúvida contraditória. Isso não a torna inútil. Quando os humanos se comunicam, eles não compreendem verdadeiramente uns aos outros; eles apenas compartilham o objetivo de alcançar essa compreensão. Como Habermas argumenta, não é a existência da verdade, mas sim um compromisso partilhado para sua possibilidade que torna a comunicação (e, por conseguinte, a socie-dade) possível. Similarmente, no que diz respeito aos animais, é verdade, a comunicação significativa é impossível. No entanto, se as tentativas de comunicação forem feitas de boa fé e pressupondo boa vontade de excluir a ideologia e os próprios interesses, então o componente humano da interação humano/animal não difere fundamentalmente de outras formas de discurso.

A impossibilidade de um estado ideal não necessariamente condena uma sociedade fundada no compromisso de sua realização. Conseqüentemente a tragédia do direito animal não está na sua aspiração natural. Encontra-se, isso sim, na maneira em que a natureza humana compromete essas aspirações. Isso é claramente visível nos princípios da gestão de risco.

3. Os riscos da Sociedade de Risco
a Como a Sociedade de Risco se originou

Ulrich Beck explica que: "assim como a modernização dissolveu a estrutura da sociedade feudal no século XIX e produziu a sociedade industrial, a modernização dos tempos atuais está a dissolver a sociedade industrial e outra modernidade está nascendo".4Na sociedade industrial, a produção de riqueza ofuscou o risco de produção porque (entre outros motivos),

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os riscos que acompanham a ascensão da indústria foram mal compreendidos e porque os restos da sociedade feudal imputaram um senso de destino preordenado, tanto de um status social quanto para o funcionamento do ambiente.5Além disso, a onipresente luta contra a escassez gerou uma disposição para suportar os efeitos colaterais secundários.

Beck observa, por exemplo, que no início dos anos 1800, o Tâmisa era tão poluído que as pessoas que caíram dentro dele, em vez de se afogarem, morreram pela inalação dos gases venenosos que cobriam o rio.6Esses e outros riscos surgiram como uma conseqüência da modernização e foram facilmente aparentes. Hoje (pelo menos no mundo desenvolvido), a escassez não direciona mais a produção. A sociedade agora produz a um ritmo tal que muitos dos seus perigos estão associados com o excesso de produção. Além disso, os riscos inerentes à sociedade pós-industrial são menos visíveis (por exemplo, toxinas na cadeia alimentar, redução do ozônio, alterações climáticas, etc). Essas mudanças precipitaram uma reorganização fundamental da sociedade. A gestão de risco tornou-se, pelo menos, tão importante quanto o acúmulo de riqueza.

A gestão de riscos na sociedade pós-industrial é reflexiva, é o "modo sistemático de lidar com os perigos e as inseguranças induzidas e introduzidas pela própria modernização"7. Tendo em vista que os riscos não são muitas vezes facilmente perceptíveis, a tarefa de identificar o risco freqüentemente cai para a ciência, impulsionando os cientistas para o papel do perito neutro e benevolente. Ainda, identificar um risco não é um ato neutro. Ele tem profundas implicações sociais que transcendem a ciência. A identificação de riscos determina o que constitui um dano (uma determinação inerentemente subjetiva) e avalia se aquele dano aumenta para um nível que requeira mitigação. Dessa forma, a ciência, quando exercida pelos poderosos, torna-se o princípio organizador ao redor do qual a sociedade constrói sua resposta ao perigo.

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Através do seu papel como criadora/assessora do risco, a ciência se torna fonte do que Mary Douglas chama de "pensamento tabu", que usa a ameaça de perigo para criar e preservar os valores da comunidade.8Perigos compartilhados ligam a sociedade ao objetivo comum de sobrevivência mútua. Pelo fato das ameaças modernas serem invisíveis, "especialistas" que informam o público sobre a existência da ameaça e a resposta adequada, exercem um poderoso instrumento de coerção em massa. Essa agregação de poder nas mãos de uns poucos seletos seria preocupante o suficiente, por si só. A situação é agravada pelo fato de que os riscos que se incumbe à ciência identificar e mitigar, são eles mesmos criações da ciência.

Criação aqui não se refere apenas à construção social do risco (determinado comportamento constitui uma ameaça), mas também o próprio comportamento em si. Por exemplo, uma vez que a ciência identifica o confinamento em massa de animais como uma causa potencial de uma pandemia de gripe - então ela deve determinar a reação adequada a essa ameaça...

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