A (in)compatibilidade da postura do STJ no exame de admissibilidade recursal com o direito humano de acesso à justiça

AutorCarlos Henrique Bezerra Leite; Luciano Picoli Gagno
CargoFaculdade de Direito de Vitória
Páginas105-124

Carlos Henrique Bezerra Leite. Juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região – ES, Doutor em Direito pela PUC/SP, Professor do curso de graduação em Direito da UFES e do programa de mestrado da FDV/ES.

Luciano Picoli Gagno. Advogado, especialista em Processo Civil e mestrando em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV/ES, e professor de Processo Civil I na FINAC/ES.

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Introdução

O estudo a ser desenvolvido terá como foco, uma análise crítica de alguns julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de exame de admissibilidade recursal.

As críticas a serem elaboradas, terão como pano de fundo o paradigma atual dos Direitos Fundamentais e do Estado Democrático de Direito, intrinsecamente ligados entre si, por representarem não só uma ruptura com o modelo de Estado Liberal, preocupado exclusivamente com a igualdade formal dos indivíduos, como também por permitirem a constituição de um arcabouço axiológico coerente, simbolizado principalmente pela idéia de dignidade da pessoa humana.

Com efeito, a rota a ser percorrida não poderá dispensar uma análise da evolução havida na política e no Direito, que transformaram e vêm transformando o papel do Estado, para que se possa discernir não somente o que se espera do Estado em pleno século XXI, mas, principalmente, o que se espera do Direito, em especial dos Direitos Fundamentais, que sob o baluarte da dignidade humana, resguardam bens como: liberdade, igualdade, acesso à justiça e participação nas decisões políticas.

Após a fundação de tais alicerces, que são precedidos por uma breve análise da influencia contextual sobre o direito, a fim de se criar um nexo entre as mudanças de modelos estatais com a evolução dos Direitos Fundamentais, serão explicitados alguns julgados representativos da jurisprudência do STJ, pertinentes a admissibilidade recursal, para, num momento posterior, se avaliar as pré-compreensões ali envolvidas, cotejando-as com as características do paradigma jurídico atual, visando ao fim, alcançar alguma conclusão sobre a confluência ou não, do pensamento oriundo do referido Tribunal, com as idéias insculpidas na Constituição da República Federativa do Brasil, incontestavelmente situadas num Estado Democrático de Direito.

Todo esse enredo visará, ao final, responder a seguinte questão: analisando-se a postura do STJ na realização do exame de admissibilidade recursal, pode-se concluir que ela está em confluência com o anseio constitucional de acesso à justiça? Será que, ao revés, a postura do STJ pode estar situada numa perspectiva que remonta valores e idéias do Estado Liberal?

A importância desse debate se mostra significativa, na medida em que o mesmo enfrenta problemas concretos, extraídos da jurisprudência do STJ, tendo por escopo examinar a postura deste, que como ente político, detentor de um relevante papel para a preservação daPage 107 democracia e dos valores republicanos, não pode jamais se afastar dos preceitos que fundamentam e norteiam o Estado Democrático de Direito vigente.

Os julgados oriundos do STJ influenciam diretamente a vida de inúmeras pessoas, que em alguns casos, podem ter seus direitos negados em decorrência de rigores formais inúteis e obscuros, razão pela qual se pode concluir, que o tema a ser pesquisado afeta a todos os cidadãos, ainda que potencialmente, pois, mesmo aqueles que nunca demandaram em juízo, obviamente, podem vir a demandar um dia.

Além disso, ainda aqueles que nunca pretenderam demandar às mais altas instâncias, devem estar cônscios da influência subjacente da jurisprudência do STJ sobre o posicionamento dos Tribunais Estaduais e da própria magistratura de piso, que, muitas vezes, sequer têm o trabalho de avaliar criticamente a jurisprudência dominante, situação que reforça a importância da pesquisa a ser realizada, por tornar mais difuso o alcance de seus resultados.

Dessa maneira, não se pode olvidar a relevância do problema trazido à baila no estudo ora desenvolvido, sendo certo, que a partir da conclusão aqui obtida, novos debates sobre esse importante tema surgirão, dando matizes diferenciados e sólidas contribuições ao enfrentamento do problema.

Para sustentar as premissas das quais se parte, especialmente no tocante aos modelos de Estados Modernos e suas influências sobre o direito, teremos como ponto de apoio o magistério de Carvalho Neto, que, explicando as transições de paradigmas presenciadas nessa era, afirma:

Com o final da 2ª Guerra Mundial, o modelo do Estado Social já começa a ser questionado, conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração e com a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaqui, bem como pelo movimento hippie na década de sessenta. No entanto, é na década de setenta que a crise do paradigma do Estado Social manifesta-se em toda a sua dimensão. A própria crise econômica na qual ainda nos encontramos coloca em xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econômico, bem como a oposição antitética entre a técnica e a política. O Estado interventor transformasse em empresa acima de outras empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou pós-industrial comportam relações extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direito da 3ª geração, os chamados interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor, da criança, dentre outros. (...). Os direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de 1ª geração são retomados como direitos (agora revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e conforma aPage 108 soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto.1

Contudo, antes de se trabalhar a aceitação da existência de paradigmas constitucionais, argumentar-se-á no sentido de que tais contextos paradigmáticos influem diretamente no modo de se pensar o direito e os problemas jurídicos que a cada dia se renovam no convívio social, o que terá por amparo os seguintes ensinamentos de Gadamer:

Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem uma “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco um anulamento (sic) de si mesma; implica antes uma destacada apropriação das opiniões prévias e preconceitos pessoais. O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as opiniões prévias pessoais.2

Somente após o estabelecimento de tal marco, é que se dará o próximo passo, rumo a uma identificação sintética da evolução dos direitos humanos, ocorrida em concomitância com a evolução dos modelos de Estado e sob a total influência dela, o que Comparato realiza nos seguintes termos:

O resultado dessa atomização social, como não poderia deixar de ser, foi a brutal pauperização das massas proletárias, já na primeira metade do século XIX. Ela acabou, afinal, por suscitar a indignação dos espíritos bem formados e por provocar a indispensável organização da classe trabalhadora. A Constituição francesa de 1848 retomando o espírito de certas normas das Constituições de 1791 e 1793, reconheceu algumas exigências econômicas e sociais. Mas a plena afirmação desses novos direitos humanos só veio a ocorrer no século XX, com a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de Weimar de 1919.3

Sobre tais alicerces, se afirmará o contexto democrático e humanístico vivenciado pela ordem jurídica pátria, que prestigia o direito humano de acesso à justiça, tentandoPage 109 entender se ele se compatibiliza com as pré-compreensões contidas nos juízos de admissibilidade de recurso especial realizados pelo Egrégio STJ.

O método de pesquisa a ser utilizado no presente trabalho será o fenomenológico, tendo como ponto de partida a evolução histórica do Estado e do Direito, e em seguida uma análise da jurisprudência do STJ concernente à admissibilidade recursal, o que permitirá traçar um panorama geral da postura do referido Tribunal, para posterior cotejo desta postura com a indicada pelo texto constitucional, quando então nos valeremos do método dedutivo para justificarmos qualquer crítica apresentada com base nos dispositivos insculpidos no Diploma Político e na historicidade do direito.

Por esse rumo, se esclarece que a pesquisa ora desenvolvida foi exclusivamente exploratória de bibliografia e algumas jurisprudências, tendo por fim diagnosticar uma determinada conjuntura e avaliar a sua coerência com o paradigma constitucional vigente.

1 As influências do contexto sobre o Direito

As influências metajurídicas sofridas pelo Direito, tanto no seu processo de criação como de aplicação, ficaram por algum tempo escondidas sob o manto de uma suposta neutralidade, que tinha o afã de legitimá-lo com base numa hipotética ausência de subjetividade.

Tais ideais traduziam, em verdade, a ideologia racionalista que teve seu desabrochar juntamente com o da Idade Moderna, condicionando todo o pensamento humano à metodologia científica própria das ciências naturais4, preponderantemente descritivas e consideradas isentas do alvedrio humano, assertiva que já permite uma reflexão sobre a influência do todo sobre o particular.

Para que o Direito alcançasse o mesmo patamar de segurança e legitimidade, deveria ele também se livrar das pré-compreensões que o dominavam, ao menos no que tange a sua aplicação, modelo que ficou emblematicamente conhecido como positivismo jurídico, por...

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