O conceito de beneficiário final no regime jurídico do investidor não residente

AutorJulia Jacques de Moraes Dias Coelho
Páginas65-145

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O CONCEITO DE BENEFICIÁRIO FINAL NO REGIME JURÍDICO DO INVESTIDOR NÃO RESIDENTE

Julia Jacques De Moraes Dias coelho

Resumo
O presente trabalho tem como objetivo apresentar e contextualizar os obstáculos que a introdução ao conceito de beneficiário final, pessoa natural que, em última análise possui ou controla uma sociedade empresária, trouxe para o regime jurídico do investidor não residente. Parte-se da premissa de que as recentes ações normativas, interpretativas e fiscalizatórias da Receita Federal quanto à obrigatoriedade de identificação do beneficiário final tenderam a modificar seu tratamento legal.

O tema é discutido essencialmente pelos representantes do mercado financeiro e de capitais, ainda deslocado da produção acadêmica. Por isso, além da pesquisa bibliográfica, utilizou-se método de pesquisa empírica-exploratória com entrevistas entre representantes do setor público e privado para a indicação, na prática, dos impasses e obstáculos observados.

O trabalho está dividido em três partes. No primeiro capítulo, foram estudados o conceito, os requisitos e impedimentos do regime do investidor não residente. É necessário entender seu funcionamento para, na segunda parte, conceituar e aplicar o instituto do beneficiário final. Na terceira e última parte, são analisadas as consequências da introdução desse conceito e as possíveis alterações observadas pelos entrevistados.

Palavras-Chave
Investidor Não Residente. Beneficiário Final. Instituição Financeira. Regime Jurídico. Receita Federal.

Introdução
O fluxo internacional de investimentos nos mercados financeiro e de capitais atribui ao Investidor Não Residente (INR) papel relevante na economia brasileira. Em 2014, o Banco Central, por meio do censo de capitais estrangeiros, confirmava o ingresso de mais de 446 bilhões de dólares de investimento de não residentes no Brasil (Banco Central, 2018) que, hoje, representam, de acor-

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do com a [B]³,1uma participação de 23,58% na Bolsa de Valores (BMFBOVESPA, 2018).

O maior ingresso de capitais estrangeiros no país decorre em grande parte da flexibilização e simplificação da regulação (QUEIROZ, 2000, p. 119) e da concessão de benefícios fiscais (BARBOSA, 1996, p. 117) que, dependendo da operação, podem chegar à alíquota zero de Imposto de Renda (IR) aos rendimentos e ganhos de capital auferidos no Brasil. O regime especial tributário, no entanto, vem recentemente chamando atenção fiscalizatória da Receita Federal Brasileira (RFB) devido a suposta prática de negócios ilícitos construídos por meio de diferentes estruturas e jurisdições para fazer jus ao benefício tributário.

Em outubro de 2017, auditores da RFB se reuniram com nove instituições financeiras, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) e, ainda, com a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e o Banco Central (Bacen)2

para dialogar sobre o registro — e a tributação — dos INR (GRANER e PUPO, 2017). O intuito era alertar sobre os indícios de fraude tributária encontrados pela Receita Federal, de que investidores registrados como não residentes, por meio da constituição de estruturas no exterior, poderiam ser, na realidade, residentes no Brasil em busca dos benefícios fiscais. Diante dessa situação, os auditores da RFB cobraram das instituições financeiras — responsáveis pelo registro desses investidores — maior “diligência” para identificar corretamente os contribuintes e verificar se, de fato, se enquadram na definição de INR (GRANER, 2017).

O ponto de interesse para as finalidades deste trabalho é que essa identificação e verificação pelas instituições financeiras requer o conhecimento prévio do beneficiário final, pessoa natural que, em última análise, possui ou controla o INR. Informação essa que se tornou de indicação obrigatória em 2016 com a edição da Instrução Normativa (IN) RFB nº 1.634.

Neste sentido, o objetivo deste trabalho é introduzir e contextualizar os possíveis obstáculos que o conceito de beneficiário final trouxe para o regime jurídico do INR. A hipótese levantada e, que será testada no trabalho, é a que a RFB, por meio de alterações normativas, interpretativas e fiscalizatórias, vem causando potenciais mudanças no regime jurídico do INR. Para tanto, o trabalho foi realizado a partir de pesquisa bibliográfica, incluindo doutrina ju-

1 [B]³ refere-se à Brasil, Bolsa e Balcão, a única Bolsa de Valores no Brasil que resultou da fusão da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros de São Paulo (BM&FBOVESPA) com a Central de Custódia e de Liquidação Financeira de Títulos (CETIP).

2 Foram realizadas duas reuniões, participando na segunda apenas a Comissão de Valores

Mobiliários (CVM) e do Banco Central (Bacen).

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rídica, jornais, artigos científicos e sites na internet. Além disso, para entender as mudanças na prática, realizou-se pesquisa empírico-exploratória, por meio de entrevistas com os setores público e privado. O problema de investigação foi orientado pela seguinte pergunta: “De que forma as ações da RFB, apoiadas no conceito de beneficiário final, tendem a modificar o tratamento legal do investidor não residente?”.

O trabalho foi dividido em três partes. Na primeira parte, analisa-se o regime jurídico do INR no Brasil. Detalha-se seu conceito, previsão legal e regime tributário especial. Na segunda parte, analisa-se a construção do conceito de beneficiário final, sua importância, a previsão no ordenamento jurídico brasileiro, a atuação da Receita Federal e os desafios de identificação. Por fim, na terceira parte, analisa-se as eventuais mudanças observadas no regime jurídico do INR. Ressalta-se que, durante todo o trabalho, em especial no Capítulo 3, serão indicadas as informações obtidas nas entrevistas empíricas.

O tema não se esgotará neste estudo, devido a seu caráter exploratório, pela novidade de seu objeto e ao tempo e espaço dedicado a expor todas as potenciais mudanças do conceito de beneficiário final no regime jurídico do INR. Não cabe (e nem poderia) a este trabalho descrever todas as consequências empíricas. A análise indica algumas das potenciais alterações para posterior e mais aprofundada discussão acadêmica.

Método de Pesquisa
Com o objetivo de investigar potencias mudanças no regime jurídico do INR, foi aplicado o método de pesquisa qualitativa, de caráter exploratório. O método foi escolhido visando contribuir para ampliação e destaque do debate que vem sendo travado essencialmente por profissionais do mercado financeiro e de capitais, mas ainda deslocada do âmbito acadêmico.

A abordagem de pesquisa utilizada, pretendendo maior aproximação da aplicação da norma ao contexto social é a sócio-jurídica, “uma pesquisa sociológica, de base empírica, tendo o direito por objeto” (OLIVEIRA, 2003, p. 18). De acordo com OLIVEIRA (2003, p. 19), a pesquisa bibliográfica, normalmente utilizada pela maior parte dos juristas, não possui um potencial renovador forte “pois permanece no círculo do saber constituído” e seria mais incisiva e convincente se baseada em dados concretos, assim como proposto pela abordagem escolhida. Ainda segundo OLIVEIRA (2003, p. 24), o direito não é o que está na lei, mas aquilo que é efetivamente aplicado pelos juízes e administradores públicos.

Conforme anotado por GIL (2007, p. 41), “A grande maioria dessas pesquisas envolve: (a) levantamento bibliográfico; (b) entrevistas com pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado; e (c) análise de

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exemplos que estimulem a compreensão”. Seguindo a lógica do autor, utilizaremos, além da pesquisa bibliográfica, a pesquisa empírica, com a realização de entrevistas, isso porque é necessário se debruçar sobre a prática, dado que o estudo não atingiria os fins almejados se o restringíssemos à interpretação formal da lei (OLIVEIRA, 2003, p. 24).

As entrevistas foram realizadas por meio da modalidade semiestruturada. Para TRIVIÑOS (1987, p. 146), entrevista semiestruturada se entende como:

aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante.

TRIVIÑOS (1987) esclarece que as perguntas são resultadas não só da teoria que alimenta a ação do investigador, mas de toda a informação que já coletou do fenômeno social. Complementa TRIVIÑOS (1987, p. 152) que a entrevista “favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade”. Nessa linha, as perguntas realizadas (Apêndice A), por serem abertas e flexíveis, incorporaram outras interpretações ao longo das entrevistas.

Para obter melhores resultados, de acordo com a abordagem descrita anteriormente, trabalhou-se, conforme TRIVIÑOS (1987, p. 146), com diferentes grupos de pessoas. Foram entrevistados profissionais dos diferentes setores envolvidos e que têm relação direta com o INR. Os setores escolhidos ao trabalho foram o (i) Estado, pela Receita Federal atuar em âmbito normativo, inter-pretativo e fiscalizatório frente ao INR; (ii) Instituições Financeiras, por atuarem como responsáveis do INR no Brasil; (iii) Gestores de Recursos de Terceiros, por participarem da formulação dos beneficiários residentes no Brasil na constituição de veículos de investimento no exterior; (iv) Juristas, para produzir maior tecnicidade ao trabalho ora exposto; e (v) Opinião Pública Não Estatal, pela atuação com todos os demais representantes mencionados.

Foram realizadas, ao total, seis entrevistas, tendo a categoria de gestores dois entrevistados. As entrevistas ocorreram em um período de dois meses, abril e maio de 2018, com duração de 10 a 40 minutos. É importante...

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