Conceito de relação de consumo e atividades prestadas por entidades sem fins lucrativos. Ensaio sobre o alcance do Código de Defesa do Consumidor

AutorBernardo Strobel Guimarães
Páginas164-187

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1. Um problema recorrente - Dificuldades para a fixação do âmbito de abrangência do CDC

A implantação de um microssistema jurídico com vistas à proteção do consumidor, inaugurado com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor - CDC (Lei 8.078/1990), desde sua origem, vem rendendo ensejo a discussões acerca de quais as relações jurídicas sujeitas a este diploma. Sem exagero, pode se afirmar que um dos grandes focos de controvérsia envolvendo o direito do consumidor reside na correta identificação da sua abrangência.

Concorrem para o fenômeno razões jurídicas relevantes que tornam o problema intrincado. Primeiramente, a própria disciplina específica no CDC, por exorbitar do direito civil ordinário, é, por si só, fonte de controvérsia. Não bastasse tanto, é de se ver que inúmeras matérias que configuram relações de consumo possuem regra- mentos específicos em relação a alguns de seus aspectos (v.g., legislação securitária, bancárias, de planos de saúde etc.) o que leva à necessidade de se questionar qual o regime jurídico a que se sujeitam tais disciplinas em relação a pontos bastante específicos. Por fim, é de se notar que o CDC não se aplica apenas onde haja relações de consumo conforme por ele definidas (arts. e 3-), há extensões legais (arts. 17 e 29) que predicam a aplicação do diploma para além do trato das relações entre consumidor e fornecedor, quando verificadas hipóteses específicas. Ou seja, o CDC não se aplica exclusivamente onde haja relação de consumo.

Em raso esforço de síntese, podem ser apontadas as razões jurídicas de relevo acima vistas que demonstram a dificuldade de se fixar com precisão o âmbito de abrangência do CDC, que justificam o desconforto sentido no trato com este diploma. Em

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que pese algumas das questões originariamente postas já se encontrarem praticamente pacificadas, a própria evolução da sociedade acaba por gerar novos desafios (por todas citem-se as questões que envolvam a internet).

Neste quadro é que se insere o tema objeto do presente estudo, qual seja os limites e possibilidades de aplicação do CDC face às personalidades jurídicas que desempenham atividades econômicas sem b intuito de lucro (chamado Terceiro Setor). Com efeito, o tema a ser abordado é em última instância é saber se aplica o CDC a quem não persegue lucro em suas atividades. A novidade do tema justifica plenamente o presente esforço que tem apenas a pretensão de lançar algumas luzes sobre o tema, ainda bastante carente de análise jurídica.

Para responder com acerto à questão, no entanto, é mister repisar os próprios elementos que configuram juridicamente a relação de consumo objeto imediato da tutela legislativa, explicitando nuances que por vezes passam sem ser notadas, por análises, não raro, feitas de afogadilho.1 Ou seja, ainda antes de se pretender responder à questão fundamental é necessário definir uma série de elementos referentes ao próprio direito do consumidor que, se adotados sem reserva, podem conduzir a desacertos.

2. Relação de consumo, sua identificação legal e seu valor metodológico - Importância essencial e autonomia do seu objeto

Nos termos dos artigos que regem a matéria (CDC, arts. 2ºe 3º), vê-se desde logo que a relação jurídica de consumo tem em um de seus pólos o consumidor e noutro o fornecedor, tendo por objeto um produto ou serviço, estando todos os elementos definidos legalmente.2"3~4 E necessário pois analisar a estrutura desta relação para desvelar o problema do âmbito de aplicação do CDC com base nela. Reveste-se o conceito de relação de consumo de inestimável valor metodológico para se trabalhar com acerto em relação ao direito do consumidor; sem embargo de sua importância, carece ainda o tema de estudo haja vista habitualmente ser tomado como pressuposto que dispensaria maiores meditações acerca de seu conteúdo (fundamento óbvio).5

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É o que se busca fazer, sob pena de sequer poderem ser arranhadas as questões postas em discussão, analisando-se a estrutura da própria relação de consumo em seus diversos elementos.6

No primeiro pólo, temos a figura do consumidor que se identifica nos termos da Lei (CDC, art. 2º) como: "toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final". Percebe-se que o elemento que caracteriza o conceito é a qualidade de destinatário final de produto ou serviço. Ambas as condições hão de estar perfeitas para estarmos diante do consumidor definido legalmente. A sutileza a ser destacada consiste no fato de que o consumidor é definido em função - em última instância - como aquele que recebe, como usuário final, "produto" ou "serviço". Logo, o próprio conceito de consumidor depende fundamentalmente do objeto da relação (produto/serviço).

Ou seja, "produto" e "serviço" são, nos termos legais, conceitos essenciais para que se caracterize a própria figura do consumidor, que é quem irá fruí-los como destinatário final.

O fornecedor, outro pólo da relação de consumo, ao seu turno, é conceituado como: "pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços".

E de se notar que, novamente, a con-ceituação legal remete a "produto" e "serviço" como elementos de essência para se definir afinal quem é o fornecedor.

Isto, pois, as atividades postas em elenco só se fazem relevantes quando afetadas a "produtos" e a "serviços", de sorte que se pode reputar o rol como meramente exemplificativo.7 Neste particular, sequer o elemento subjetivo (tipo de personalidade jurídica) é importante na medida em que a definição legal alcança qualquer arranjo jurídico (inclusive os despersonalizados) capaz de operar (seja de que forma for, sendo indiferente o elenco legal dos verbos), em tese, com "produtos" ou "serviços".

Conforme já se pode concluir, ainda antes da análise do objeto, a relação de consumo se caracteriza mais pelo seu conteúdo do que por qualidades dos integrantes de seus pólos.

Com efeito, a qualidade de consumi-dor ou fornecedor (em suas formas ordinárias, excluindo, então, as equiparações que se submetem a outro regime) só é alcançada em se levando em conta o objeto/conteúdo da relação (i.e. produtos ou serviços).

Não por outra razão, ambos os conceitos, conforme legalmente definidos (arts. 2ºe 3º, caput), aludem expressamente a produtos e serviços. Deste modo, o objeto é essencial para a identificação da relação de consumo, condicionando a própria definição dos seus sujeitos.

Em verdade, os únicos elementos que atinam exclusivamente aos sujeitos da relação de consumo são: (i) a qualidade de destinatário final no que toca à definição do consumidor e (ii) a habitualidade/ profissionalismo das atividades do fornecedor,8 todo o resto, no que toca aos pólos,

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é acidental. Veja-se, que o próprio conceito de fornecedor só se alcança levando-se (imediatamente) em conta o objeto da relação e< é condicionado sobremaneira por ele.9 ..' . '.

Tanto para definir o consumidor, quanto o fornecedor, não basta considerar apenas a natureza deste sujeito, há sempre elíptica uma questão de essência um "adquirir ou utilizar o que", ou ainda "produzir, montar, criar, construir, transformar, . importar, exportar, distribuir ou comercializar o que". Somente quando a resposta às questões acima formuladas for "produto ou serviço" é que haverá consumidor ou fornecedor nos termos das respectivas definições legais.

Ou seja, dizer que a relação de consumo é a que se estabelece entre consumidor de um lado e fornecedor de outro (como usual na doutrina) embora esteja correto deixa de chamar a atenção a um ponto fundamental para a compreensão do fenômeno, qual seja, que esta relação tem hecessa- x ri amenté por objeto produto ou serviço (e que o seu conteúdo condiciona a própria identificação dos seus atores).

Mais ainda, atribuir a condição de consumidor e de fornecedor a quem quer que seja pressupõe uma averiguação prévia acerca do objeto da relação de consumo e sua identificação preliminar como sendo produto ou serviço.

Tal constatação inverte o trato habitual que se dá à questão, na medida em que, usualmente, coloca-se o objeto da relação dé consumo como elemento menor, mera decorrência de haver trato entre fornecedores e consumidores. Tal orientação é por tudo falaz na medida em que ignora que as qualidades consumidor/fornecedor somente podem ser assumidas quando o objeto da relação havida for produto/serviço. Isto por força do que está contido na própria lei.

Tal ordem de coisas (e até a disposição dos artigos do CDC) levou a se tratar do objeto da relação de consumo (produto/ serviço) como elemento de menor importância cuja definição remeteria, i.e. seria inferida, da correta identificação dos pólos da relação.10

Cumpre, pois, examinar com a devida atenção o objeto da relação de consumo, ou seja, o conceito de produto e serviço e os condicionantes por ele impostos ao outros elementos da relação {i.e. os pólos: consumidor e fornecedor), haja vista sua importância fundamental já devidamente ressalvada anteriormente. .

Como ponto de partida, tem-se as prescrições do CDC que...

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