A Utilização de Conceitos de Direito Criminal para a Interpretação da Lei de Improbidade

AutorMarcelo Harger
CargoAdvogado em Joinville/SC. Pós-graduado em Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná/ PUC-PR. Mestre e doutor em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Páginas18-26

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1. Introdução

A lei de improbidade não é uma lei criminal. A rigor, "ela elege ilícitos administrativos e cria um tipo administrativo que estaria a meio-caminho entre o tipo penal e o ilícito administrativo"1. Outros autores conferem-lhe um caráter tipicamente administrativo2.

O fato é que, não sendo penais, os ilícitos ali elencados podem ser considerados como cíveis em sentido amplo. Isso se evidencia até mesmo pelas penalidades aplicadas, dentre as quais inexiste pena privativa de liberdade. A redação, por sua vez, obedece ao estilo das leis cíveis e não ao das leis penais, onde se verifica a descrição de uma conduta proibida seguida de uma pena3.

Apesar de se tratar de uma lei civil, a interpretação a ser dada a ela é equivalente à das leis penais. Faz-se essa afirmação porque se trata de uma lei cuja observância acaba por restringir direitos de diversas categorias por intermédio da aplicação de penalidades. Isso significa dizer que para fins exclusivos de interpretação deve-se encará-la como se penal fosse, com as consequências que disso se extrai4. É que, como bem salienta Daniel Ferreira, há diversos princípios estudados pelo direito penal que devem ser invocados por ocasião da imposição de qualquer restrição de direitos aos particulares pelo Estado5.

Isso ocorre porque não há diferença ontológica entres os ilícitos civil, criminal e administrativo. Regis Fernandes de Oliveira é bastante claro a esse respeito:

"O conceito de antijuridicidade é comum aos diversos ramos do direito; pertence à teoria geral do direito. Por isso não se distinguem os ilícitos civil, criminal e administrativo, em sua essência; ontologicamente, são uma e mesma coisa."6.

No mesmo sentido é o entendimento de Heraldo Garcia Vitta:

"Ontologicamente, os ilícitos penal, administrativo e civil, são iguais; fazem parte de instituto jurídico determinado: os ilícitos jurídicos. As diferenças existentes entre os ilícitos penal, administrativo e civil constituem manifestações de um mesmo conceito, que não é próprio desta ou daquela disciplina, antes compreende todos os tipos de ilícitos do ordenamento. Trata-se de conceito lógico-jurídico, de validez universal. O conceito de ilícito não decorre deste ou daquele ordenamento jurídico, não é conceito jurídico positivo; aplica-se a todos, independentemente do lugar e do tempo que tiverem vigência."7

Nelson Hungria segue a mesma linha de raciocínio:

"A ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência é o dever jurídico. Dizia Benthamque as leis são divididas apenas por comodidade de distribuição: todas podiam ser, por sua identidade substancial, dispostas "sobre um mesmo plano, sobre um só mapamundi”. Assim, não há falar-se de um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal."8

A inexistência de diferença ontológica em relação ao ilícito reflete-se na sanção, onde também inexiste qualquer diferença ontológica. Conforme Régis Fernandes de Oliveira, "inexiste diferença de substância entre pena e sanção administrativa"9.

Heraldo Garcia Vitta, seguindo a mesma linha, versa sobre o tema:

"As sanções penais e administrativas são iguais, homogêneas, e eventuais divergências de gravidade não significam distinção de fundo, de substância. As sanções são, ontologicamente, iguais."10

Nelson Hungria também manifesta entendimento equivalente:

"Se nada existe de substancialmente diverso entre ilícito administrativo e ilícito penal, é de negar-se igualmente que haja uma pena administrativa essencialmente distinta da pena criminal. Há também uma fundamental identidade entre umae outra, posto que pena, seja de um lado, o mal infligido por lei como conseqüência de um ilícito e, por outro lado, um meio de intimidação ou coação psicológica na prevenção contra o ilícito. São species do mesmo genus. Seria esforço vão procurar distinguir, como coisas essencialmente heterogêneas, e.g., a multa administrativa e a multa de direito penal. Dir-se-á que só esta é conversível em prisão; mas isto representa maior gravidade, e não diversidade de fundo. E se há sanções em direito administrativo que o direito penal desconhece (embora nada impediria que as adotasse), nem por isso deixam de ser penas, com o mesmo caráter de contragolpe do ilícito à semelhança das penas criminais."11

A inexistência de diferenças ontológicas em relação ao ilícito e às sanções cíveis, administrativas e criminais implica uma mesma ratio juris por ocasião da decretação de sanções. As limitações ao exercício do poder punitivo estatal são extraídas diretamente do princípio constitucional do Estado de Direito, e isso faz com que as noções de teoria geral do direito que foram aprofundadas pelos estudiosos do direito penal possam ser estendidas às demais categorias de ilícitos12. Garante-se, assim, que a repressão administrativa ou judicial de condutas ilícitas ocorra de modo não arbitrário13.

Evocam-se, por isso, por ocasião da interpretação da Lei 8.429/92, os princípios do direito punitivo e as regras de interpretação previstas para a inflição de punições. Há quem ressalte que há princípios gerais de direito punitivo e outros que são peculiares ao direito penal14. Embora seja correta a afirmação, é forçoso reconhecer que todos os princípios gerais do direito punitivo foram analisados mais aprofundadamente por

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estudiosos do direito penal. É por essa razão que faremos referência a esse ramo do direito, sem deixar de reconhecer que a transposição de princípios não pode se dar de modo acriterioso.

É necessário esclarecer, também, que o presente trabalho não é exaustivo. Apenas apontar-se-ão linhas mestras a serem seguidas.

2. Os princípios do direito penal

O princípio mais importante do direito penal é seguramente o da taxatividade da norma incriminadora ou da tipicidade. A lei deve ser clara quanto aos tipos de ilícito. É necessário que o cidadão saiba taxativamente o que é lícito e o que é ilícito. Veda-se tanto a incriminação através do costume quanto a incriminação por analogia, mas não é só isso. Serve também de limite ao legislador ao elaborar tipos penais abertos15.

Outro princípio é o da aplicação da lei mais favorável ou da irretroatividade da lei mais grave. A lei que comina pena mais grave não retroage. A lei que comina pena menos grave é retroativa. É princípio previsto no inciso XL do art. 5e da Constituição Federal e também no art. 2- do Código Penal brasileiro, segundo o qual "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Esse princípio tem como corolário a ultratividade da lei penal mais benéfica.

Há também o princípio da proteção dos bens jurídicos, segundo o qual:

"Não é admissível a incriminação de condutas que não causem perigo ou danos aos bens corpóreos e incorpóreos inerentes aos indivíduos e à coletividade.16

O nosso sistema jurídico está ancorado no modelo do crime como ofensa a bens jurídicos. A regra do art. 13 do CP, estabelecendo a relação de causalidade entre a conduta humana e o evento típico, é uma guardiã fiel do axioma segundo o qual a existência do crime depende de um resultado, ou seja, de um dano ou um perigo de dano a um bem tutelado pelo Direito Penal."

Vigora, ainda, como diretriz do direito penal o princípio da culpabilidade, que pode ser traduzido pelo brocardo latino nulla poena sine culpa. Trata-se de corolário do princípio da dignidade da pessoa humana previsto no inciso III do art. 1e da Constituição Federal17.

É, também, princípio de direito penal a proporcionalidade da pena, segundo o qual as penas não podem exceder o limite do mal causado pelo ilícito praticado. A resposta penal deve ser proporcional à gravidade da ofensa18.

Pode ser extraído da Constituição Federal, ainda, o princípio da individualização da pena19, segundo o qual somente pode sofrer a sanção o autor ou partícipe do fato punível. Não se pode impor pena a terceiro que não concorreu para a infração.

O princípio da insignificância é aquele segundo o qual a norma penal não deve ser aplicada quando o dano ou perigo de dano são irrisórios. O bem jurídico afetado é insignificante e por essa razão a norma penal não incide.

O princípio do in dubio pro reo ou da presunção de inocência é o princípio segundo o qual a dúvida jamais pode autorizar uma sentença condenatória. Havendo dúvida quanto aos fatos ou ao direito pertinente ao caso, não se pode decidir contrariamente ao réu. Havendo incerteza sobre elemento normativo do tipo ou sobre o sentido da norma complementar nos tipos penais em branco, deve o réu ser absolvido.

O non bis in idem é o princípio segundo o qual ninguém pode ser punido duplamente pela mesma infração.

Todos esses princípios têm plena serventia por ocasião da interpretação e da aplicação da lei de improbidade administrativa. Os mais importantes serão analisados detalhadamente a seguir.

3. O princípio da tipicidade

O inciso XXXIX do art. 5e da Constituição Federal determina que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Trata-se de postulado trazido ao direito penal como consequência da evolução do Estado de Direito. O referido dispositivo traduz o postulado da legalidade penal.

Esse princípio foi incorporado ao direito criminal como garantia contra o arbítrio punitivo20. Não se trata de mera legalidade, mas sim de legalidade estrita, que exige que "os delitos estejam predeterminados pela lei de maneira taxativa, sem reenvio (ainda que seja legal) a parâmetros extralegais"21. Isso significa dizer que a lei penal exige a utilização de termos com extensão definida ao incriminar condutas. Não basta a reserva de lei. É necessário lei que descreva com termos...

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