A concentração de empresas e a competência do cade

AutorJosé Carlos de Magalhães e Onofre Carlos de Arruda Sampaio
Páginas30-44

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1. Introdução

A internacionalização das economias nacionais, materialmente integradas pela revolução nos transportes e nas comunicações, está a exigir percepção atenta à nova ordem de valores e comportamentos que esse fenómeno gera, com a possível modificação ou superação de conceitos que se tornaram ultrapassados em face da nova realidade.

Nesse quadro inclui-se a atividade consagrada aos Estados de preservar o ambiente concorrencial, oferecendo segurança jurídica aos agentes económicos que nele: atuem ou venham a operar, impedindo que práticas danosas ao sistema da livre iniciativa prosperem e frustrem os resultados que dela se espera.

A livre concorrência constitui princípio basilar que informa o sistema político-econômico dos Estados Unidos, país que, ao contrário do Brasil, sempre preservou a livre iniciativa e a concorrência como valores fundamentais da nação. Leis foram promulgadas, estudos feitos, casos julgados, formando incomensurável acervo sobre a matéria, que tem servido de base para quantos tenham que enfrentar questões dessa natureza.

Mesmo na Europa a livre concorrência jamais constituiu princípio norteador das economias nacionais, registrando-se práticas monopolísticas e formação de cartéis em diversos países, a atestar a falta de universalidade do princípio da livre concorrência. Só recentemente, em virtude do inusitado processo de concentração de empresas, para fazer frente à crescente concorrência internacional e ante a constituição da União Europeia, é que aqueles países passaram a dar ênfase às disposições dos arts. 85 e $6 do Tratado de Roma, que regulam o assunto.1

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Essa modificação de comportamento coincide com o surgimento do fenómeno da globalização da economia, em que se registrou aumento significativo de aquisições, fusões e incorporações de empresas em todo o mundo, fazendo com que decisões paradigmáticas em tempos passados se mostrassem impróprias para regular concentrações empresariais motivadas por realidades distintas, antes desconhecidas.

2. A defesa da concorrência e o fenómeno da globalização

Esse fenómeno fez com que a concentração de empresas passasse a ser encarada sob ótica diversa da que se registrava no passado. Os parâmetros adotados para mercados nacionais fechados, que operavam em ambiente diverso do atual, tornaram-se inadequados para a realidade presente, em que as empresas são forçadas a formar alianças e a realizar ajustes de concentração, com fusões, incorporações ou acordos de cooperação, que lhes permitam ampliar a economia de escala e sinergia, para enfrentar a concorrência cada vez mais acirrada e, assim, sobreviver. São mudanças estruturais realizadas sob as mais diversas formas jurídicas, com o objetivo de criar condições para enfrentar concorrentes, que, por sua vez, procuram ser mais eficientes, redesenhando seus perfis e estratégias.

Nos Estados nacionais de economia fechada as autoridades muitas vezes tiveram êxito em interferir e condicionar a estrutura e o comportamento de certos seto-res da economia, mediante intervenção direta, com regulamentações, ou indireta, com estímulos fiscais ou creditícios. Esse poder é hoje de certa forma limitado, sobretudo pelas normas da Organização Mundial do Comércio, que impede a adoção de políticas de subsídios, ou protecionismos formais, como a abandonada reserva de mercado na área de Informática feita pelo Brasil, fazendo com que os Estados venham a depender dos agentes económicos internos e internacionais, estes cada vez mais interdependentes e livres para atuar em economias abertas.

A adoção da política de fronteiras abertas, com o abandono da prática da substituição de importações, que, por longos anos, informou a atuação dos países não-industrializados, sobretudo dos latino-ame-ricanos, dentre os quais o Brasil, fez crescer a preocupação em dar contornos novos à legislação antimonopólio.

De fato, embora o Brasil já dispusesse, desde 1945,2 de lei específica sobre o assunto, reformulada em 1962,3 e de órgão estatal encarregado de disciplinar o abuso do poder económico e as infrações à ordem económica, o Conselho Administrativo de Defesa Económica - CADE, jamais foi incorporada ao espírito da burocracia estatal, tenazmente apegada ao exercício do poder e ao intervencionismo que a tem caracterizado.

Pelo contrário, o protecionismo tarifário4 contra importações, a proteção à em-

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presa nacional, mediante incentivos, a imposição de barreiras tarifárias e não-tarifá-rias, que excluíam o produto estrangeiro similar ao nacional, mesmo quando este fosse mais caro e de pior qualidade tecnológica, o controle da importação de tecnologia,5 o monopólio estatal de certos produtos e serviços, tidos como estratégicos, a política de controle de preços, os sucessivos congelamentos de preços e salários, que o processo inflacionário agudo provocou, criaram, sobretudo na burocracia estatal, mentalidade incompatível com a livre concorrência e com o mercado aberto.

Essa mentalidade intervencionista contrasta, atualmente, com o interesse dos países neo-industrializados, como o Brasil, que podem ser os reais beneficiários do processo de integração económica mundial se forem capazes de atrair investimentos de capital para a instalação de indústrias voltadas à produção de bens para os mercados nacional e internacional. A esse propósito, salienta Jagdish Bhagwati6 que os países do Sul vêem na integração na economia mundial uma oportunidade, mais do que um perigo, de que estão temerosos os países do Norte, sobretudo ante o declínio do valor dos salários dos empregados não-qualifica-dos nos Estados Unidos e o declínio do emprego na Europa, verificado nos anos 70 e 80. Esse fenómeno tem sido apontado como responsável pela política protecio-nista daqueles países, invertendo a situação anterior, em que a proteção era buscada pelos países menos industrializados.7 Curiosamente, são países como o Brasil que agora enfrentam o protecionismo norte-ameri-cano e europeu, disfarçado sob as mais diversas formas, compelindo o País a provocar a intervenção da OMC para impedir a continuação de tal política.

3. A livre concorrência na Constituição de 1988

Se no plano externo essa realidade evidencia o interesse do Brasil, como país neo-industrializado, na abertura e integração económica, contrastando com o interesse dos países desenvolvidos em adotar práticas protecionistas para defender salários e empregos, no plano interno nota-se resistência de setores do empresariado nacional, acostumados a dispor de mercado cativo e não-concorrencial e do auxílio do Estado, bem como da própria burocracia estatal, nem sempre disposta a abrir mão de poder. Os longos anos de prática intervencionista deixaram marcas profundas que a Nação resolveu apagar ao optar, na Constituição de 1988, pela livre iniciativa e pela não-intervenção do Estado na economia.

Essa opção revela-se nos princípios gerais da atividade económica, inscritos nos arts. 170 e ss. da CF, que dão ênfase à livre concorrência, à defesa do consumidor e do meio ambiente, dentre outros, com o afastamento do Estado da exploração da atividade económica, salvo quando necessário aos imperativos da segurança nacional ou em virtude de relevante interesse co-letivo (art. 173).

Coerentemente, dispôs a CF, no § 4º do art. 173, que "a lei reprimirá o abuso do poder económico que vise à dominação

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dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" -após haver, no parágrafo único do art. 170, assegurado "a todos o livre exercício de qualquer atividade económica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei".

Assim, no que tange à problemática da concorrência, os parâmetros traçados pela Constituição fixaram-se no abuso do poder económico que objetive a dominação dos mercados, que vise à eliminação da concorrência ou que resulte no aumento arbitrário dos lucros, significando isso que o que veda a Lei Maior é o abuso do poder económico, por qualquer das formas de que se revista, e que tenda a alcançar um ou alguns dos fins previstos. Não se cogita do poder económico legítimo, assim configurado o alcançado mediante mecanismos próprios da atividade mercantil. Mesmo o monopólio é lícito desde que não resulte de processo, gradual ou não, de eliminação de concorrentes, mediante abuso do poder económico. Quem é titular de uma patente detém monopólio legal e sua exploração somente se tornará ilegítima se dela resultar aumento arbitrário dos lucros, ante a ausência de processo concorrencial que impeça, controle ou imponha limite em tais lucros.

A eliminação da concorrência é, igualmente, aceita pela ordem jurídica se decorre da atividade industrial ou mercantil melhor desenvolvida, com oferta de produtos com melhor tecnologia e melhor preço, sem que haja abuso do poder económico. A disputa pelo cliente tem como pano de fundo a diminuição do poder do concorrente e tende a eliminá-lo, não sendo, por si só, ilegítima essa eliminação se não houver abuso de poder económico ou atividade desleal ou ilícita. Esta, a propósito, a norma do § 1º do art. 20 da Lei 8.884/94, que não caracteriza como ilícita a dominação de mercado relevante de bens e serviços mediante processo natural, fundado na maior eficiência do agente económico.

Vê-se do texto constitucional que o fundamento para a repressão consiste sempre no abuso do poder económico. E a Lei 8.884/94, ao dispor sobre a prevenção e a repressão às infraçoes contra a ordem económica, tendo de se ater aos princípios constitucionais que a informaram, e deles não se podendo...

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