Condições da Ação

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas502-509

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A despeito de a ação, como pudemos ver, constituir um direito subjetivo público de índole constitucional, de par com ser autônoma e abstrata, o correspondente exercício pode ser subordinado ao atendimento de certos requisitos legais, como medida tendente a evitar que a atuação do poder-dever jurisdicional do Estado seja provocado por aquele que não reúna condições para realizar essa invocação. Permitir, pois, que o interessado impetrasse a tutela jurisdicional sem a observância de quaisquer requisitos seria, em nome do direito de ação, abrir larga oportunidade ao abuso do direito, às aventuras judiciais.

As condições da ação foram realçadas na doutrina do notável Enrico Tullio Liebman, cuja residência, em nosso País, entre os anos de 1940 e 1946, inspirou, como vimos, o surgimento do que Alcalá-Zamora viria a denominar, mais tarde, de “Escola Processual de São Paulo” — ou “do Brasil?” —, como indagam, com razão, Cintra, Grinover e Dinamarco (ob. cit., 8. ed., 1986, p. 80).

Discípulo de Chiovenda, Liebman conhecia em profundidade as doutrinas processuais italiana e alemã, pois além de grande estudioso do assunto, era professor titular de direito processual civil na Universidade de Parma. A extraordinária cultura jurídica e a personalidade afável do jovem mestre italiano logo motivaram a que pensadores brasileiros dele se acercassem, ávidos de entrarem em contato com as ideias imperantes na velha Europa. Surgiram, então, as reuniões semanais na casa de Liebman, em São Paulo. Como anota Cândido Dinamarco, “Sob sua orientação segura, os discípulos ganharam asas e alcançaram voos alcandorados no céu da cultura processualística” (Fundamentos do Processo Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. p. 8).

Alfredo Buzaid, um dos discípulos de Liebman, absorveu, com fidelidade, as lições do mestre; mais que isso, utilizou-as na elaboração do anteprojeto do atual Código de Processo Civil, ao tempo em que era Ministro da Justiça.

Com efeito, o diploma processual civil vigente faz referência às condições da ação no art. 267, VI, declarando, em harmonia com a doutrina de Liebman, que elas compreendem:
a) a possibilidade jurídica do pedido; b) a legitimidade das partes; e c) o interesse processual.

A inexistência de quaisquer dessas condições poderá conduzir ao indeferimento da petição inicial (CPC, art. 295, II e III e parágrafo único, III), com a consequente extinção do processo sem pronunciamento sobre o mérito (CPC, art. 267, VI).

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1. Possibilidade jurídica do pedido

A expressão “pedido juridicamente impossível” vem sendo, na prática, incorretamente interpretada. No âmbito do processo do trabalho, e. g., quando o empregado deduz uma pretensão fundada em direito que, em verdade, nem a lei, o contrato ou o instrumento normativo lhe conferem, costuma-se declará-lo carecedor da ação, sob o argumento de que o seu pedido, por não ter amparo em quaisquer das fontes citadas, é juridicamente impossível. Venia concessa, como bem adverte Moniz de Aragão, a possibilidade jurídica de um pedimento judicial não deve ser, como geralmente o é, conceituada segundo o ângulo da existência, no ordenamento jurídico, de uma previsão que torne o pedido viável, em tese, mas, ao contrário, com vistas à inexistência, nesse ordenamento, de forma que o faça inviável (Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1974. v. II, p. 436).

Bem se percebe, pois, que no exemplo citado o empregado não poderia ser declarado carecente da ação, na medida em que inexiste, no ordenamento legal, qualquer veto à pretensão por ele apresentada. Uma coisa, consequentemente, é a lei não prever o direito invocado pela parte e outra, a lei proibir a formulação de certos pedidos.

Quando a lei não ampara um determinado pedido, este deve ser rejeitado, sem que se pronuncie eventual carência da ação, relativamente a quem o formulou.

Erro inveterado, como já alertamos, em que vem incidindo a jurisprudência trabalhista, no que tange ao assunto em exame, é declarar o autor carecedor da ação sempre que não se reconhece o vínculo de emprego com o réu, por ele pretendido. Até onde sabemos, não há, no ordenamento legal, qualquer regra vedatória de um pedido dessa natureza; além disso, o réu, na hipótese, não seria parte ilegítima para responder à ação, tão certo como o autor teria inegável interesse de agir em juízo.

O caso é, portanto, de rejeição do pedido (reconhecimento da relação de emprego), que envolve exame do mérito e não de imaginária “carência da ação”, que acarretaria a extinção do processo sem julgamento das questões de fundo (mérito).

Estas nossas considerações, aliás, vêm a propósito.

De acordo com o sistema construído por Liebman, a ausência de quaisquer dessas condições enseja a declaração de carência da ação e a extinção do processo sem prospecção do mérito. É precisamente neste ponto que lavramos divergência quanto à doutrina liebmaniana. Ocorre que se há nas estruturas normativas um veto à dedução de certo pedido, a sentença, que faz respeitar esse veto, invade o campo do mérito e, conseguintemente, acarreta a extinção do processo com exame de tal mérito. Ilustremos com um caso característico o do pedido lastreado em dívida oriunda de jogo (CC, art. 814): “As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento”. Conformando-se esse pedimento, com perfeição, ao conceito doutrinário de impossibilidade jurídica, é óbvio que a sua rejeição, pela dicção jurisdicional, acarreta um inevitável aportamento ao mérito da causa. A entender-se de maneira oposta, ter-se-ia de justificar a possibilidade de o autor

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renovar o pedido, mediante nova ação, tantas quantas fossem as vezes que desejasse, porquanto, segundo o tratamento que o CPC deu à matéria, a pronúncia de carência não inibe o autor de ingressar em juízo,...

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