Condutas anticoncorrenciais no setor bancário

AutorCalixto Salomáo Filho
Páginas51-62

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I - Introduçáo

O problema fundamental no estudo das condutas anticoncorrenciais no setor bancário está na correta definigáo da am-plitude da disciplina. Em se tratando de setor regulado, sujeito ao poder de policía governamental, torna-se imperativo verificar quando e como as regras de direito concorrencial podem ser aplicadas.

Para essa verificagáo, é preciso de inicio determinar o grau de compatibilidade entre o sistema regulatório e o concorrencial. É preciso verificar se o que se procu-rou foi criar um sistema regulatório tendente a instituir a concorréncia onde ela nao exista, suprir as fallías de mercado impeditivas do funcionamento da concorréncia, ou entáo, apurar se o sistema regulatório cumpre algum outro objetivo público ou social nao redutível a política de concorréncia. Se esse for o caso, entáo é preciso determinar se a regulamentacjío excluí totalmente a aplicado do direito concorrencial ou se é possível fazer conviver os dois sistemas (regulatório e concorrencial).

Essa tentativa, de tudo se compatibi-lizar com o sistema concorrencial, justifi-ca-se tanto na teoría jurídica como na prá-tica económica.

Na primeira, por cumprir a risca o preceito do art. 170 da Constituiçáo Federal que, contendo varios principios a informar a ordem económica, inclusive o da li-vre concorréncia, sem dúvida clama por urna compatibilizagáo entre eles. É, alias, hoje já clássico na teoría constitucional a idéia da coabitagáo e nao da exclusáo entre principios.

Na prática económica, a justificativa está na idéia, hoje plena de significado, que urna das formas mais efetivas de interven-gáo governamental no campo económico reside exatamente na aplicagao ativa do direito concorrencial ou do direito regulatório concorrencial.

Ao significado e amplitude desse tema será dedicado o próximo tópico.

II - Direito da concorréncia e teoría da regulagáo

A teoría da regulado tradicional sem-pre viveu de extremos. Central para a dis-cussáo ideológica entre esquerda e direita, é herdeira de seu dilema de fundo entre Estado e esfera privada.

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No debate, estáo de um lado urna serie de teorías que podem ser classificadas como teorías do interesse público,1 que procuram justificar a existencia da regulagáo em razáo do interesse público envolvido - beneficios aos consumidores e incremento do bem-estar social -, que leva a substituir o mercado como forma de orde-namento do sistema económico. Sao, por-tanto, em sua concepgáo ideal, essencial-mente boas.

De outro existem as teorías económicas da regulagáo.2 De índole exacerbada-mente liberal, procuram justificar a regula-gao com base na oferta e demanda por regulagáo. Demanda que viria dos grupos afetados pela regulagáo e oferta que viria em um primeiro momento dos legisladores e, mais avante, dos próprios reguladores. Sustentada em ideáis táo fracos, a regulagáo, conforme vista por essa teoría, acaba por transformar-se em produto da captura das agencias governamentais por interesses privados. Tornam-se, portanto, essencial-mente más.

Essas visóes maniqueístas da realida-de jurídica sao responsáveis, em boa medida, pela pouca eficiencia da regulagáo, mesmo naqueles setores em que ela é evidentemente necessária. Parece que a experiencia hoje já resiliente de fracassos regu-latórios sugere via alternativa para a justi-ficagáo da regulagáo.

A alternativa mais coerente parece ser a justificativa concorrencial da regulagáo. Para entender o porqué dessa afirmagáo é necessário de inicio afastar um mito. Justificativa concorrencial da regulagáo nada tem a ver com a visáo liberal ou de mercado da regulagáo exposta ácima. Ao contrario do que por muito tempo se imaginou -e ainda equivocadamente se imagina- urna aplicagáo coerente dos principios concor-renciais requer profunda descrenga no mercado como instrumento autónomo de tutela do sistema económico.

A concurrencia, e nao o mercado, é a palavra-chave de organizagáo do sistema económico. Essa concepgáo encontra de resto respaldo expresso na Constituigáo Federal. Nao fazendo o art. 170 qualquer distingáo, a concorréncia é a principio apli-cável a toda a ordem económica, esteja ela sob regulamentagáo ou nao. Para que os principios concorrenciais nao se apliquem é necessário urna excegáo expressa constitucional ou legal, desde que autorizada pela Constituigáo.

Impor a existencia de concorréncia através da regulagáo e do direito antitruste é profundamente diferente que deixar vigorar as regras do mercado. A conseqüéncia desta última é, sem dúvida, a medio e longo prazos, o desaparecimento da concorréncia. E a formagáo de estruturas mono-polísticas.

Nessa visáo, os principios concorrenciais nao sao informadores apenas do direito antitruste por assim dizer clássico, aque-le consubstanciado na lei de concorréncia e contendo as disciplinas tradicionais das estruturas e das condutas. Podem e muitas vezes devem estar á base de regulamenta-góes governamentais.3

Evidentemente essa regulamentagáo nao é aplicável áquelas áreas em que há

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urna decisáo política e constitucional clara no sentido de exercício da atividade no re-gime de servido público com substituigao do sistema concorrencial. Quando isso nao ocorrer, no entanto, a regulamentagáo con-correncial é de rigor.

No sistema jurídico brasileiro, a pre-valéncia dos principios concorrenciais em atividades regulamentadas deve se fazer sentir em dois grupos básicos de situagóes.

Em um primeiro, bastante recente, a regulamentagáo é necessária para criar a concorréncia onde ela nao existe. Isso ocor-re freqüentemente naqueles setores urna vez monopolizados pelo Estado e que sao privatizados. Geralmente com as características típicas de monopolio natural, eles sao infensos a urna intervengáo antitruste tradicional. É necessária urna verdadeira regulamentagáo concorrencial, ora proibin-do per se comportamentos, ora impondo negociagoes. É o caso do setor de teleco-municagoes.

A recente leí de telecomunicagoes e sua regulamentagáo cria urna verdadeira regulamentagáo concorrencial do setor, impondo a concorréncia. Seu ponto central nao poderia ser mais interventivo. Trata-se da regulamentagáo da interconexáo, centrada na obrigagáo imposta as empresas de telefonía fíxa de contratar com as de tele-fonia móvel a interconexáo á rede em condigóes equitativas e competitivas. Verdadeira obrigagáo de contratar, portanto, no interesse do sistema concorrencial.4

Um segundo grupo de situares é aque-le em que a regulamentagáo é necessária para garantir a eficacia e seguranga do funcionamento do sistema. Nele se incluí a regulagáo do sistema bancário. Esses sao geralmente os casos mais delicados, pois há no mais das vezes certo confuto, ao menos psicológico, entre o objetivo de tornar o sistema seguro e o de defender (ou criar) a concorréncia. Tal oposigao é, como se verá mais adiante, meramente aparente. Isto porque estabelecimento da concorréncia e seguranga do sistema sao conceitos complementares e nao excludentes, como se verá a seguir.

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III - Regulagáo concorrencial do sistema financeiro
  1. Principios gerais: higidez do sistema financeiro e sistema concorrencial

    A fiscalizado das instituigóes finan-ceiras do ponto de vista concorrencial é dever nao apenas do CADE, mas também do Banco Central do Brasil-BACEN. A Leí 4.595, de 31.12.64, prevé, em seu art. 10, inc. X, letras c e g, que toda fusáo, in-corporagáo, transformagáo e alienagáo de controle das empresas deve ser autorizada pelo BACEN. O BACEN tem, portanto, com relagáo as ínstituigóes financeiras, a mesma competencia fiscalizatória atribuida pelo art. 54 ao CADE com relagáo á ge-neralidade das empresas.5 Por outro lado, tratando-se a lei bancária de regulamento específico, nao pode ser derrogada pelas disposigóes mais genéricas da lei concorrencial.

    O mesmo pode ser dito com relagáo ao controle das condutas. O art. 11, inc. VII, da mesma Lei 4.595/64 prevé que ao BACEN compete "exercer permanente vigilancia nos mercados financeiros e de ca-pitais sobre empresas que, direta ou indire-tamente, interfiram nesses mercados e em relagáo as modalidades ou processos ope-racionais que utilizem". É possível, portanto, também ao BACEN o exercício do controle comportamental.

    Mais do que isso. Os fins da atuagao do BACEN sao absolutamente consentáne-os com a aplicagao do direitó concorrencial. A própria Lei 4.595/64 expressamen-te estabelece em seu art. 18, § 2- que "o Banco Central do Brasil, no exercício da fiscalizagáo que lhe compete, regulará as condigóes de concorréncia entre as institui-góes financeiras, coibindo-Ihes os abusos nos termos desta Lei".

    Tres outras razoes fortíssimas indu-zem esta conclusáo.

    Em primeiro lugar, exercendo o BACEN poder de policía administrativo, deve obedecer, pelas razoes antes analisadas, os principios concorrenciais em sua atuagao.

    A segunda razáo é aínda mais forte. A protegáo da poupanga popular, objetivo chave da atuagao das autoridades de tutela do Sistema Financeiro Nacional-SFN,6 é perfeitamente compatível com os objetivos concorrenciais. Alias, esses últimos objetivos lhe sao instrumentáis. A excessíva con-centragáo de instituigóes financeiras, ao in-vés de diminuir aumenta os riscos para a poupanga popular. Quanto maior for o ta-manho de urna instituigáo financeira, tanto maiores e mais serios seráo os prejuízos causados por suas dificuldades e por sua quebra. Dessa forma, urna política coeren-te de protegáo á poupanga popular deve levar em consideragáo o dado concorrencial.

    Mas nao é so. Em se tratando de controle das condutas é evidente que o risco da falta de controle é sistémico. As condutas anticoncorrenciais, em sua maioria, vi-sam a exclusáo do concorrente. A sua prá-tica pode levar entáo até mesmo a quebra de instituigóes financeiras, temor dos temores das autoridades governamentais. Portanto...

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