A mediação e a solução dos conflitos no estado democrático de direito. O “juiz hermes” e a nova dimensão da função jurisdicional

Autor1.Humberto Dalla Bernardina de Pinho - 2.Karol Araújo Durço
Cargo1.Pós-Doutor em Direito (Uconn Law School). Mestre, Doutor e Professor Adjunto de Direito Processual Civil na UERJ. Professor dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado da UNESA. Promotor de Justiça Titular no Estado do Rio de Janeiro - 2.Mestre em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo
Páginas20-54

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"a conciliação desmancha a lide, a decompõe nos seus conteúdos conflituosos, avizinhando os conflitantes que, portanto, perdem a sua identidade construída antagonicamente 1 ."

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Considerando o objetivo primordial do presente ensaio no sentido de tratar da mediação e das perspectivas para o processo civil contemporâneo, no ano em que o Projeto2 de Lei 4.827 completa dez anos de tramitação no Congresso Nacional, faz-se necessário, previamente, contextualizar o instituto sob uma perspectiva pós-positivista, de um direito como sistema aberto e, ainda, no interior de uma moldura constitucionaldemocrático-deliberativa de direito e de processo.

Pois bem, para garantirmos tal intento, antes de uma análise específica e dogmática da mediação, é preciso discorrer, ainda que brevemente, sobre a jurisdição em uma perspectiva evolutiva, apontando-se, igualmente, para os objetivos e para um estágio ideal de sua prestação atinente ao modelo de Estado e de sociedade que almejamos construir.

Sendo assim, para facilitar a compreensão das idéias fundamentais que buscaremos a seguir e como premissas jurídico-filosóficas para um entendimento sobre o porquê da necessidade de se buscar outros métodos de solução de conflitos, partiremos de uma singela análise de três modelos fictícios de juiz e de jurisdição, os quais, como veremos, coadunam-se aos três grandes estágios dos Estados ocidentais modernos e pósmodernos.

Nesse quadro, para cumprirmos esta meta introdutória, possibilitando a visibilidade do enquadramento e do papel da mediação em um contexto jurídico-social mais amplo e interdisciplinar, valemo-nos dos estudos do belga François Ost3 o qual, em artigo intitulado “Júpter, Hércules, Hermes: Tres modelos de Juez” identificou e caracterizou os modelos de juiz a partir dos quais desenvolveremos as considerações propedêuticas que se seguem.

Portanto, partindo dos estudos do referido autor, almejamos realizar uma associação entre cada um dos mencionados personagens e os modelos de Estado de Direito que inspiraram as Constituições dos Estados ocidentais do século XVIII até o século XX, quais sejam, os modelos liberal, social e democrático, para, ao final, sob a égide daPage 22construção e do estabelecimento desse último, localizarmos e estudarmos a mediação como método mais amplo, democrático e pluralista de se pacificarem muitos dos conflitos presentes em nossa sociedade.

Assim, uma vez realizada a análise dos ensinos de Ost sob a perspectiva dos paradigmas decorrentes de cada um dos modelos de organização estatal citados, buscaremos identificar as vantagens de um juiz do Estado Democrático para os fins almejados pela processualística contemporânea, notadamente sob a perspectiva de um processo participativo e cooperativo e sob a moldura da teoria do discurso e de uma racionalidade comunicativa; apontaremos, também, para a mediação como instância indispensável ao cumprimento de tão elevados escopos jurídico-sociais e como instituto complementar à jurisdição tradicional.

Destaque-se, primeiramente, então, que a associação entre os modelos de juiz e os modelos de Estado sob a égide dos quais aqueles exercem suas funções jurisdicionais não é destituída de sentido e importância. Com a referida associação, portanto, o que se quer fazer compreender é a existência de uma relação interna entre os fundamentos de um Estado e o modo pelo qual é prestada a jurisdição e são pacificados os conflitos no mesmo.

Nessa esteira, a intenção é demonstrar que os mecanismos de atuação das partes envolvidas na relação processual, assim como suas prerrogativas, direitos e deveres, decorrem do sistema institucional do Estado no qual se inserem, bem como os próprios meios de pacificação de conflito.

Por outras palavras, a atividade jurisdicional e a presença dos denominados equivalentes jurisdicionais4 (autotutela, autocomposição, mediação e julgamento de conflitos por tribunais administrativos) nada mais é do que um reflexo do modelo de Estado sob o qual esta é exercida.

Em sociedades primitivas a pacificação dos conflitos era feita pela força privada; em Estados despóticos a pacificação dos conflitos confundia-se com o próprio Rei; em Estados liberais a mesma era ditada pela lei do mercado; em Estados sociais a pacificação dos conflitos correspondia ao paternalismo prestacionista; e em Estados democráticos a pacificação dos conflitos deve ser legitimada por um discurso processual intersubjetivoPage 23além de reclamar, portanto, métodos outros que a estrita e fria atuação estatal por meio da atividade jurisdicional.

Nesse quadro, fazendo um corte a partir do período moderno e pós-absolutista, o primeiro modelo de juiz a ser tratado corresponde, na lição de Ost, ao juiz Júpiter, o qual se vincula ao paradigma do Estado Liberal.

Assim, apenas para recordar, vale dizer que Estado Liberal5 clássico, frente a sua finalidade principal de garantir a liberdade dos cidadãos, foi assinalado por um rígido sistema de limitação de seus poderes a fim de se criar uma esfera de proteção jurídica privada6.

Nesse Estado a lei não levava em consideração diferenças na condição social dos indivíduos, pois sua intenção era dar tratamento igual às pessoas somente em sentido formal, devendo ser, portanto, concomitantemente “clarividente e cega” 7. Este modelo é fruto do pensamento positivista8, de um direito codificado cujo pilar central é a “norma fundamental”. Nas palavras de Ost9, a codificação representaria coerência, completude, clareza, não redundância, simplicidade e manejabilidade pondo as coisas simples claras e comunicáveis.

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Outra nota caracterizadora do Estado Liberal é que o mesmo representa a passagem de um modelo transcendental de direito de bases metafísicas para um direito racional de base lógico-dedutiva. Sendo, pois, um sistema legislado fechado e autônomo10distinguindo-se pelo monismo jurídico (possui uma base soberana: a lei); monismo político (o poder é centralizado nas mãos de um soberano); racionalidade dedutiva (já que de formato piramidal a partir da norma fundamental); e futuro controlado (crença legislativa de uma evolução histórica). Nesse modelo o direito se resumiria a “lei” vista em um sistema piramidal. Desta pirâmide irradiaria toda a justiça11.

Por óbvio, esta formatação de Estado teve repercussão sobre a atividade jurisdicional e os métodos de pacificação de conflito, porque de nada adiantaria conformar a atividade legislativa e permitir que o juiz ou as partes envolvidas no conflito interpretassem livremente a lei em face da realidade social.

Afirmava Montesquieu12, sobre este sistema, que o julgamento deveria ser apenas um “texto exato da lei”, pois de outra maneira constituiria “uma opinião particular do juiz” e, dessa forma, “viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos nela assumidos”13. O método de aplicação do direito nesse modelo de Estado, portanto, é o dedutivo através de um “silogismo subsuntivo” e não existia espaço para os equivalentes jurisdicionais.

O dever do juiz de justificar a decisão é meramente interno, ou seja, a decisão deve ser coerente com o sistema de direito14, que aqui é considerado apenas como a lei. Por outras palavras, a legalidade é condição necessária e suficiente para a validade da regra15. A base do direito é a abstração e a generalidade da lei. Assim, também, o acessoPage 25à justiça, parafraseando Mauro Cappelletti e Bryant Garth16, era apenas formal, mas não efetivo, correspondendo a uma igualdade apenas formal.

Tais considerações espelham, exatamente, a ideologia do Estado Liberal que liga liberdade política à certeza do direito17. Nas palavras de Luiz Guilherme Marinoni18, “a segurança psicológica do indivíduo – ou sua liberdade política – estaria na certeza de que o julgamento apenas afirmaria o que está contido na lei”. A busca do positivismo é pela segurança jurídica, mas não se pode perder de vista que o excesso de positivismo gera o autoritarismo.

Nessa moldura liberal e por percorrer este desencadear de idéias que Montesquieu19 definiu o juiz como a bouche de la loi (a boca da lei), concluindo, no seu célebre “Do espírito das Leis”, que os juízes de uma nação não são “mais que a boca que pronuncia as sentenças da lei, seres inanimados que não podem moderar nem sua força nem seu rigor”.

Assim, pode-se concluir que o juiz do Estado Liberal possui como dever fundamental a imparcialidade em sentido formal. Ele deve, além disso, policiar o processo evitando desvios do modelo abstrato previsto na lei.

Nas palavras de Ost20, Júpiter é “o homem da lei”. Nesse Estado, o juiz adota uma posição passiva diante do caso, ele não atua na busca da verdade somente fiscaliza a relação processual. É um juiz “mínimo” tal qual o Estado Liberal, um mero longa manus da lei.

Sendo assim, a pacificação dos conflitos por um método dialógico de compreensão e cooperação entre as partes, que, como veremos, é a proposta da mediação, não tinha qualquer espaço no referido modelo, o qual buscava a solução dos conflitos no reflexo da legislação prévia e abstrata sobre os fatos, tal qual se vê uma imagem em um espelho ou uma fotografia; não existia, assim, margem para discricionariedade.

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Frente a esta conformação, além de ser a jurisdição a única forma de solução das lides, não se cogita neste sistema em deveres de lealdade, de cooperação na busca da verdade. Exige-se tão somente o cumprimento do procedimento previamente previsto em lei, permitindo-se, desse modo, uma atuação puramente estratégica das partes no processo.

Vale dizer que, uma vez driblada a formalidade do procedimento, o participante da relação processual via-se livre de qualquer amarra; não existiam mecanismos de equilíbrio da relação processual. O modelo do Estado Liberal é, pois, subordinado a uma racionalidade instrumental, segundo a qual o próprio direito serve aos fins daquele que institui a lei.

Contudo, não obstante o predomínio do Estado Liberal desde o fim do Estado...

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