Conflitos, Viol

AutorOliveira, Kelly

O presente trabalho é resultado de um dossiê elaborado com o objetivo de subsidiar a Associação Brasileira de Antropologia a se pronunciar junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o caso Xukuru. No formato de um parecer técnico, tratamos de apresentar informações sobre a relação entre o povo indígena Xukuru e o Estado Brasileiro, objeto de questão na ação movida contra o Estado Brasileiro. Importante enfatizar que o parecer foi demandado pela APOINME--Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo, que se colocou insatisfeita com a atuação do antropólogo perito do Estado, que operou na Audiência Pública na cidade da Guatemala em 21 de abril de 2017.

O prazo para elaboração do parecer foi extremamente curto, daí termos optado pela pesquisa bibliográfica, dada a vasta produção científica na área de Antropologia e Sociologia existente sobre o povo, e pela pesquisa documental, a fim de facilitar a argumentação sobre o caso. A análise documental mereceu uma observação mais detida sobre o contexto de produção do material, atentando não só para o que estava escrito, "mas como foi escrito, por que foi escrito e como aquele texto circulou e foi guardado" (LARA, 2008: 22).

Para além dos documentos, nos deteremos ainda aos relatos orais de indígenas xukurus, presentes em pesquisas antropológicas, que possam nos esclarecer melhor de que forma estes indígenas têm estabelecido sua relação com o Estado Brasileiro. Inserimos também anotações de campo das pesquisadoras que, enfatizando a importância no material de cunho etnográfico, marca indelével da expertise antropológica, procuram dar visibilidade aos dramas sociais que marcam a vida de indivíduos e da coletividade xukuru.

Eis a possibilidade do campo antropológico: ler os documentos, as falas, as normatividades, situando-os no que o sociólogo e filósofo Jürgen Habermas (2001) define como o "mundo da vida", ou seja, um mundo em que o domínio social é marcado pelos processos comunicativos, cujo meio é a ação comunicativa, o que concede "carne" e "sangue" ao trabalho científico.

Segundo um dos fundadores da Antropologia Social, Bronislaw Malinowski (1984), referência clássica sobre o método etnográfico, não se deve proceder a um "levantamento de dados" per se, que garanta apenas a apresentação do esqueleto da constituição tribal, sendo necessário acrescentar "carne" e "sangue" a esses dados. Isto significa que se deve apreender o fluxo regular da cultura nativa e seus acontecimentos cotidianos, aquilo que o etnógrafo chama de "imponderáveis da vida real". Estes fenômenos são de suma importância e não podem ser apreendidos com instrumentos de pesquisa tais como questionários ou entrevistas, e sim por meio da observação participante, o que foi plenamente acionado nas pesquisas que foram a base desse dossiê.

A fim de subsidiar, portanto, uma análise mais qualificada segundo conceitos antropológicos, delimitamos o universo de nossa análise no processo de regularização fundiária da Terra Indígena Xukuru, cuja compreensão só é possível se a ele atrelarmos o conjunto de eventos que aqui definimos como "a criminalização do direito ao território" (FIALHO; FIGUEIROA; NEVES, 2011).

Antes de entrarmos na seara do campo em si, no entanto, apresentamos ainda a perspectiva conceitual que nos direciona a pensar a intervenção estatal neste grupo indígena. Pensar a relação do Estado Brasileiro com o povo Xukuru requer compreendê-lo a partir da sua formação, como um setor do que o sociólogo Pierre Bourdieu chama de campo de poder ou metacampo (BOURDIEU, 2014).

Bourdieu ressalta dois aspectos centrais sobre o Estado: a incorporação do poder simbólico como dimensão essencial do Estado e a necessidade de investigar sua gênese. O Estado passa a ser examinado como um objeto histórico e a história é incorporada à análise como um princípio de compreensão. O recurso à história é defendido como um instrumento fundamental de ruptura epistemológica. Segundo o antropólogo Marcos Bezerra (2015), o fato de o Estado ter uma participação significativa na estruturação das representações legítimas do mundo social contribui para que o pesquisador, ao se propor a pensar o Estado, o faça segundo as categorias e termos do próprio Estado.

Eis aqui um desafio que pretendemos superar neste documento: ao relatar e interpretar os documentos pesquisados, intencionamos mostrar as contradições do próprio Estado. Bezerra, ao resenhar a obra de Pierre Bourdieu, afirma que a formação do Estado como lugar de elaboração do oficial, do bem público e do universal é indissociável de dois outros aspectos. Primeiro, os agentes identificados com o bem público - como funcionários e políticos - encontram-se também submetidos às obrigações próprias ao campo administrativo. A demonstração de que estão a serviço do universal, do interesse coletivo e não de um interesse particular, por exemplo, é um meio de usufruir do reconhecimento social associado a esta condição. Isto é, de se beneficiar dos lucros simbólicos que se encontram diretamente vinculados às manifestações de devoção ao universal. Segundo, que as lutas que definem os processos de universalização são acompanhadas de lutas entre agentes sociais interessados em monopolizar o acesso ao universal. O poder do Estado seria, assim, objeto de disputa entre agentes concorrentes interessados em fazer com que seu ponto de vista e seu poder prevaleçam como o legítimo.

Bourdieu e Bezerra, seguidos pelo antropólogo Antônio Carlos de Souza Lima (2002 e 1995), auxiliam a nos distanciar de uma postura purista e normativa de que o Estado brasileiro seria exemplar na garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas. Nos ajuda a perceber que não basta ter um modelo idealmente construído sobre políticas públicas e ações do Estado, sem compreender que este modelo está sujeito ao universo simbólico e de disputas como apresentado acima. Com o material que se segue, demonstramos como Estado brasileiro, através dos vários corpos que o compõem, violou de maneira inquestionável, no caso dos Xukuru, os princípios dos direitos humanos como afirmado na nossa Constituição e nas convenções em que o Brasil é signatário.

O processo de regularização fundiário Xukuru

O povo Xukuru conviveu com um contexto de expropriação de suas terras que vai do século XVI ao século XX, conforme os documentos apresentados por historiadores, tais como Edson Silva (1998), que afirma ser este um processo longo e contínuo. Embora tenham resistido e enfrentado o esbulho de suas terras de inúmeras formas, é na década de 1980 que estes finalmente encontram, com a possibilidade da promulgação da Constituição Federal de 1988, a esperança de terem de volta seu território. É importante ressaltar que a inclusão dos artigos que tratam da questão indígena na Constituição foi fruto de pressão por parte dos indígenas na época da Constituinte e que os Xukuru estavam presentes e ativos em Brasília, através das lideranças e do Cacique Xicão.

A trajetória do processo Xukuru é semelhante a de tantos outros grupos indígenas, cuja deflagração só se dá mediante o iminente ou já concretizado conflito. O que torna o processo neste povo paradigmático é a sincronia dos eventos e a evidência de que a inoperância do Estado provocou um crescente grau de violência e insegurança no grupo. A seguir, apresentamos um breve histórico da regularização focando, por um lado, na realidade social do grupo durante o processo demarcatório e, por outro, percebendo os incidentes burocráticos e estratégias de engessamento da efetivação da demarcação no território Xukuru.

Apesar da intensa mobilização dos Xukuru, as primeiras providências para a demarcação das suas terras só ocorreram no final da década de 1980. A realização de identificação e delimitação do território Xukuru se deu em 1989 em meio a um conjunto de denúncias de perseguição aos índios. Essa situação ocasionou, ao longo dos anos, que o território Xukuru se tornasse um mosaico, onde interagem áreas de ocupação de índios e não índios, caracterizando situação de conflito permanente na disputa pela posse da terra na região (ATLAS, 1993: 66).

O período de início da mobilização Xukuru foi marcado por muito medo. Se por um lado havia o desejo de respeito à sua identidade étnica e ao território, por outro era forte a pressão contra uma mobilização étnica.

Nasci e me criei em Caípe. A gente ouvia falar de indígena, mas não tinha cacique, nós não conhecia o cacique, não sabia o que era um toré, sabia nada. Eu fui criado e me entendi de gente trabalhando ao fazendeiro. Aí nós fomos tocando a vida. Nós tínhamos medo, assim... o pessoal dizia 'as terras vai sair, o Governo vai indenizar, os fazendeiros vão embora e vai ser entregue'. E a gente dizia 'Eita, a gente vai morrer de fome. Vai morrer de fome porque a gente vive lutando, trabalhando com o fazendeiro'. Tirava conta, trabalhava na diária arrancando toco, brocando mato. (João Batista [Jota]--aldeia Jitó--11.6.2005 in: OLIVEIRA, 2013). O medo que João Batista sentiu foi uma das mais difíceis barreiras a transpor para a integração interna do grupo étnico. Submetidos a uma vida inteira trabalhando para não índios, muitos desconfiaram da proposta de terem o controle do território. Era, de fato, um conflito interno entre os diversos elos de relação com o 'patrão' não índio que, se por um lado supria as necessidades de trabalho e sustento, por outro também era o agente motor da realidade de opressão em que os índios viviam. Foi neste período em que um novo cacique toma a frente do grupo, Francisco de Assis Araújo, o Xicão Xukuru, que vem mobilizar o povo em um momento histórico de efervescência de direitos sociais, com o processo da Constituinte e a entrada de novos aliados, como ONGs e organizações civis de apoio à questão indígena.

Xicão Xukuru passa a fazer caminhada entre as aldeias, falando de direitos étnicos. Por outro lado, uma ação de denúncia feita à Procuradoria da República em Recife, em outubro de...

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