A Conquista do direito ao casamento LGBTI+: da Assembleia Constituinte à Resolução do CNJ./The conquer of LGBTI+ marriage right: since Constituent Assembly until CNJ's Resolution.

AutorFigueiredo, Ivanilda

Introdução

Quem tem o direito de dizer com quem duas pessoas adultas podem contrair matrimônio? Formar uma família? 0 casamento entre pessoas brancas e negras era proibido na África do Sul entre 1949 G1985 (1); e em 16 estados do Estados Unidos da América até 1967, quando a Suprema Corte julgou o caso Loving versus Virginia e considerou inconstitucionais todas estas leis (2).

Tais normas jurídicas não impediram que inúmeros casais se formassem e vivessem o amor e o afeto em segredo. John Blacking, professor universitário branco, e Zureena Desai, médica negra, foram condenados em 1969 na África do Sul quando o relacionamento entre eles foi descoberto. Fugindo da perseguição, passaram a viver na Inglaterra, onde casaram e tiveram quatro filhos. (3)

Mildred e Richard Loving viajaram da Virginia para Washington, onde não existia proibição ao casamento interracial, para oficializar a relação. No retorno para casa, foram processados e condenados a um ano de prisão com direito a suspensão da pena se fossem embora da Virginia e não voltassem pelos próximos 25 anos. O casal deixou o estado, mas em 1964 - por não poderem visitar familiares, dada a condenação - iniciaram o processo judicial que viria a tornar inconstitucional a perseguição aos relacionamentos interraciais. (4)

Terry Donahue e Pat Henschel viveram juntas por 72 anos, tendo iniciado o namoro na década de 40 nos Estados Unidos. (5) Naquele período, o relacionamento entre pessoas do mesmo gênero ainda era ilegal em grande parte do país e mais de cinco mil funcionários públicos foram demitidos apenas por serem homossexuais nos anos seguintes. (6)

Já Edith Windsor e Thea Spyer iniciaram o relacionamento na década de 60 e viveram juntas por 42 anos até oficializarem a união no Canadá antes de Thea, que já estava doente há longos anos, falecer. Ambas foram ativistas pelos direitos LGBTI+ durante toda a vida. Quando da morte de Thea, Edith teve seus bens de herança taxados de forma desproporcional, pois diante da lei não eram um casal. Tal fato a levou a processar o governo federal e obter decisão da Suprema Corte considerando inconstitucional a lei de defesa do casamento (Defense of Marriage Act-DOMA). (7)

No Brasil, nunca houve uma lei que proibisse os casamentos interraciais (8), embora o racismo estrutural seja um dimensionador de como estas relações foram (e são) vivenciadas ou impedidas ao longo dos anos. (9) Já o casamento entre pessoas do mesmo gênero era considerado um ato jurídico nulo até 2011, quando Katia Ozório e Letícia Perez foram autorizadas a emitir os proclamas de seu casamento pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). (10)

Em comum a todas estas histórias, há, por um lado, a interdição do Estado em não reconhecer a união de duas pessoas adultas como válida e, por outro, a luta dessas pessoas, que são representativas da ausência de direitos e do silenciamento de milhares de casais ao longo dos anos para obter o reconhecimento legal de seus relacionamentos.

São, portanto, um exemplo de como direitos fundamentais são conquistas realizadas por diferentes pessoas e grupos em articulações políticas e jurídicas responsáveis por mudanças sociais, legislativas e judiciais.

Este estudo pretende rememorar o longo caminhar para a aprovação do casamento LGBTI+ no Brasil, por meio das lutas travadas desde a Constituinte até a Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça a partir da qual restou "vedada às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo".

Desde a aprovação do casamento LGBTI+ no Brasil, há inúmeros textos acadêmicos de grande importância detalhando as teses judiciais utilizadas. (11) Vários deles serão referenciados ao longo da análise, mas não é nosso objetivo aprofundar este aspecto. Nossa pretensão é descortinar uma abordagem inédita que conjuga os aspectos políticos e jurídicos da luta por este direito (12), demonstrando que quando o tema chegou ao STF via controle concentrado de constitucionalidade já existia um longo caminhar no Congresso Nacional e na jurisprudência.

Este artigo apresentará, em princípio, a etapa da união estável LGBTI+ como uma demanda suprimida. Boaventura de Souza Santos, ao tratar de uma sociologia das ausências, cria o termo "procura suprimida" para designar a falta de postulação judicial por determinadas pessoas ou grupos de seus direitos. (13) Falamos, então, "demanda suprimida" para designar a ausência - por contingências socioculturais e históricas- de apresentação de uma demanda por direitos. Tanto os casais LGBTI+s já existiam quanto o próprio movimento já estava organizado em 1987, entretanto a demanda pelo direito à união estável LGBTI+ não esteve presente na Constituinte, como se demonstrará no item 01

Em sequência, demonstraremos os debates legislativos e judiciais se entrecruzando enquanto atores políticos voluntários (ativistas, parlamentares aliados, etc.) e involuntários (pessoas LGBTI+ que precisaram por contingências práticas da realidade buscar as vias judiciais para obter direitos) lutam por uma arena na qual seus clamores ressoem e seus direitos sejam assegurados.

  1. Da "demanda suprimida" na Constituinte aos diversos projetos de lei sobre o tema

    O debate na Assembleia Constituinte em torno do rol de direitos fundamentais a serem expressos constitucionalmente foi extremamente rico. O movimento LGBTI+ participou apresentando a demanda de proibição da discriminação por orientação sexual e, apesar de aprovar a proposta em duas Subcomissões constituintes (14), não logrou sua inclusão no texto final.

    Importante rememorar que, numa eleição permeada por marcas e limitações do processo de redemocratização, foram eleitos os parlamentares da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) a qual, após finda a redação do texto constitucional, permaneceria como Congresso Nacional.

    Em 1 de fevereiro de 1987, sob a presidência do ministro José Carlos Moreira Alves, presidente do Supremo Tribunal Federal, instalou-se, em sessão solene, a Assembleia Nacional Constituinte (15) com 559 parlamentares, sendo 512 deputados (16) e 55 senadores eleitos. (17) Na primeira sessão ordinária, por 394 a favor, 124 contra e 17 abstenções, venceu que seriam também parte no novo Congresso 26 Senadores "biônicos", ou seja, Senadores não eleitos que haviam sido nomeados pelo ditador Ernesto Geisel. Em seguida, Ulisses Guimarães foi escolhido Presidente da ANC. (18)

    Rejeitou-se a ideia de se principiar a redação tendo como base um anteprojeto, assim os debates iniciaram a partir da divisão em Comissões e Subcomissões temáticas. (19) Forças conservadoras, que eram ampla maioria, e progressistas travaram inúmeros embates neste processo. Intensa também foi a participação dos cidadãos, movimentos sociais, organizações da sociedade civil, religiões (especialmente a católica), empresários, ruralistas e demais forças sociais nas Subcomissões, por meio das audiências públicas e em sugestões de textos enviados para as Comissões. (20)

    Nessa etapa, a participação dos constituintes e da população foi intensa, tendo sido concedidas 182 audiências públicas, encaminhadas 11.989 propostas e apresentadas 6.417 emendas aos anteprojetos. A sobrecarga de informações e de temas, a inexperiência de parte dos parlamentares e normas regimentais novas e imprecisas produziram algumas votações confusas. Por sua vez, o procedimento descentralizado e o menor número de parlamentares em cada comitê favoreceram a obtenção e a troca de informações, recompensaram os constituintes mais atuantes e propiciaram a elaboração de anteprojetos extensos e detalhistas. As primeiras grandes polêmicas e os contornos básicos da futura Constituição manifestaram-se nessa fase. (21) As Comissões lograram um projeto, porém ele não foi o texto final votado e aprovado. Em 26 de julho de 1988, o então Presidente José Sarney diria que com o texto até ali existente o país se tornaria ingovernável. Ulisses Guimarães fez um pronunciamento à nação pelas redes de tv em defesa da proposta sistematizada na Comissão de Redação que foi negociada e votada, sendo promulgada em 05 outubro de 1988.

    O procedimento foi envolto em tantas polêmicas que o constituinte e ex-ministro do STF Nelson Jobim se tornou centro de uma imensa controvérsia ao dizer, quinze anos depois, que certos artigos da Constituição não haviam sido votados. Posteriormente, melhor se explicando, ele afirmou que a Comissão de Redação inseriu novos textos - que não haviam passado nas Comissões temáticas, o que em tese não deveria ter sido feito. Porém, a Comissão de Redação só realizou acréscimos a partir de votações unânimes. Ademais, Ulisses Guimarães, cuidadoso como foi em todo o processo para evitar qualquer contestação à legitimidade da Constituição Cidadã, fez o texto final ser votado nominalmente e assim todas as decisões tomadas ao longo do processo foram referendadas. (22)

    Nas idas e vindas constituintes, o movimento LGBTI+ - à época conhecido como movimento brasileiro de liberação homossexual (23) - atuou em diversas frentes: a) submeteu emendas por meio especialmente das organizações Triângulo Rosa, Lambda - Movimento pela Livre Orientação Sexual e Grupo Gay da Bahia; b) realizou ações de pressão, como o envio de mais de 600 cartas e centenas de ligações para os Constituintes e c) atuou em advocacy constante nos corredores e marcou a presença em duas Subcomissões. (24)

    Na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, realizou-se uma audiência pública com os temas "O homossexual e a Constituição e Instrumentos de participação direta e de iniciativas populares como garantia da cidadania", tendo como palestrantes João Antônio de Souza Mascarenhas e José Geraldo de Souza Júnior.

    Na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias da Comissão da Ordem Social realizou-se a audiência Direitos dos índios...

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