A conquista da liberdade: aspectos históricos do surgimento do Habeas Corpus na Inglaterra

AutorMônica Ovinski de Camargo
CargoMestre em Instituições Jurídico Políticas pelo Curso de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC)
Páginas595-616

    Mestre em Instituições Jurídico Políticas pelo Curso de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Supervisora de Monografias do Depto. de Ciências Jurídicas, Membro efetivo do NUPEC (Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania) e Professora de Criminologia e Metodologia do Trabalho Monográfico da UNESC – Universidade do Extremo Sul Catarinense. E-mail: monicamargo@uol.com.br.

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1. Introdução

A origem e a elaboração do Habeas Corpus, como um instituto jurídico-político, confunde-se com a própria história da conquista da liberdade física, face ao poder punitivo do Estado. Os contornos atuais do instituto, talhados lentamente no decorrer de seis séculos, ilustram a batalha travada entre o indivíduo e o poder político, tendo a liberdade física como objeto de disputa. A afirmação da supremacia da liberdade física frente ao poder político foi repetida por inúmeras vezes, até que se percebesse a importância de garantir este direito através de um instituto jurídico, que pela sua origem histórica, consolidou-se mais como político: o Habeas Corpus.

Juridicamente, o Habeas Corpus é um instrumento para garantir a liberdade física do indivíduo contra as prisões consideradas ilegais, eivadas de arbítrio e sem fundamentos legítimos. A fórmula que hoje vem consagrada pela maioria das Constituições contemporâneas abrange todo o ordenamento jurídico, qualificando-se como um limite severo ao poder de cercear a liberdade física do indivíduo. Por mais que os sistemas penais se fundamentem na promessa de instituir um procedimento justo, para aferir a culpabilidade da pessoa, nada valem sem a previsão de institutos aptos à proteção da liberdade. A estruturação do Habeas Corpus na base desses sistemas é de capital importância para garantir a liberdade física, em meio a um procedimento que pode culminar na supressão deste direito.

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Contudo, o estudo superficial do instituto pode negligenciar sua origem política, explicação coerente para suas características e sua função dentro do Estado de Direito. Foi a partir do reconhecimento do direito à liberdade física, que o instituto se firmou contra as prisões ilegais, determinadas fora do alcance preestabelecido nos costumes ou na lei. Tal disputa ocorreu quando um conjunto de circunstâncias únicas, verificadas na história política da Inglaterra, impulsionou o surgimento da garantia da liberdade física, ao lado de outros importantes institutos que atualmente fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro.

O objetivo da presente pesquisa é estudar as razões políticas da formulação histórica do instituto do Habeas Corpus na Inglaterra, em contigüidade ao desenvolvimento das liberdades políticas. A importância do esforço aqui realizado está em descrever a ligação política do instituto jurídico do Habeas Corpus e seu liame histórico com a disputa de poder entre o indivíduo e o Estado. O exame das condições históricas e políticas, que contribuíram para a definição do Habeas Corpus, é essencial para a sua compreensão, pois tais fatores determinaram seus limites e sua função dentro do Estado Democrático de Direito, como um writ para garantir a liberdade física do indivíduo. De outra banda, ressalte-se que a importância em se estudar o modelo de Habeas Corpus construído na Inglaterra reside no fato de que este instituto foi importado deste país para o Brasil e inserido na legislação pátria, desde o Código de Procedimento Criminal, de 1832, e permanece até os dias atuais como garantia do direito de liberdade física.

Para cumprir com o objetivo proposto, a presente pesquisa apresenta a formulação do Habeas Corpus nos principais documentos políticos da história da Inglaterra, dentre os quais a Magna Carta de 1215, a Petition of Right, de 1628 e os dois Habeas Corpus Acts, de 1679 e 1816, perfazendo seis séculos de história política.

A metodologia aplicada consistiu na pesquisa bibliográfica, de cunho histórico, com o emprego de livros especializados.

2. Desenvolvimento
2. 1 A Magna Carta e seu triunfo histórico: um marco para as liberdades políticas

Para o entendimento das circunstâncias políticas e jurídicas que deram origem à Magna Carta, documento inglês que tratou da liberdade física do indivíduo, é necessário visualizar quais eram as motivações dos barões que apresentaram este documento ePage 598 exigiram sua assinatura do monarca inglês conhecido como João Sem Terra1 (CHURCHILL, v. 1,1960, p. 187).

A revolta do baronato representava a insubmissão dos vassalos mais poderosos do rei, os quais objetivavam impor limites ao crescimento da potestade real, que se expandia desde o reinado de Henrique II, o qual empreendeu ações para concentrar o poder em suas mãos. A insatisfação do baronato também se relacionava aos impostos, de valor exorbitante e exaustivamente cobrado para sustentar toda a pompa e os caprichos reais. Os barões pagavam altas quantias, mas não os custeavam sozinhos, passavam a frente os prejuízos, os quais alcançavam grande parte dos indivíduos de outros grupos sociais, dentro da estrutura feudal.

Retirar João do trono seria um novo desastre para a Inglaterra, que se veria afogada em uma anarquia feudal. Destruir a estrutura jurídico-administrativa montada por Henrique II2 também não era uma boa decisão, pois bem sabiam que ela era indestrutível, afinal, foi inteligentemente construída e estava arraigada na vida cotidiana das pessoas. Os barões agiram coerentemente e decidiram impor controles aos atos do rei. Somente controles firmes poderiam impedi-lo de avançar cada vez mais nos direitos costumeiros baroniais, como, irremediavelmente, permitiram a Henrique II. Já que não havia maneiras de retroagir, queriam salvar o que ainda possuíam e perceberam, enfim, que não adiantaria limitar apenas João. Precisavam de algo que se estendesse no tempo, alcançando os futuros monarcas. Os barões estavam refletindo:

Eles haviam aprendido a pensar inteligente e construtivamente. Em lugar do despotismo arbitrário do rei, propunham, não a devastadora anarquia do separatismo feudal, mas um sistema de fiscalizações e equilíbrios que daria à monarquia sua força necessária, mas impediria sua deturpação por um tirano ou tolo. Os líderes dos barões, em 1215, caminhavam às apalpadelas sob uma luz fraca em direção a um princípio fundamental. O governo deveria daí por diante significar algo mais do que o domínio arbitrário de qualquer homem, e o costume e a lei deveriam erguer-se acima do próprio rei. (grifo nosso) (CHURCHILL, v. 1, 1960, p.222).

Foi em uma região da Inglaterra chamada Runnymede que o rei João foi compelido a assinar a Magna Carta, na presença de poucos e destemidos barões, acompanhados do arcebispo de Canterbury, no dia 15 de junho de 1215 (CHURCHILL, v. 1, 1960,Page 599 p. 223). Compelido porque percebeu, enfim, que toda a Inglaterra estava contra ele, sendo que o Papa Inocêncio era seu único aliado. Este, inclusive, não reconheceu a Carta, considerando-a indigna e sem valor algum, apoiando João em todas as vezes que o documento foi desrespeitado. Sem entrar no mérito de seu cumprimento, ater-se-á neste instante ao conteúdo e ao significado político da Carta dos barões.

Não se iludam aqueles que pensam que a Carta foi uma revolta do povo inglês contra o rei arbitrário. Certo é que o povo estava descontente, mas daí a pensar que a Carta também se dirigia à proteção geral dos ingleses, é falacioso. Não há de se exagerar no conteúdo e no alcance das disposições da Magna Carta naqueles tempos, pois ela se configurou em uma defesa única dos interesses da classe baronial, que acabava por último a beneficiar o povo, mas posteriormente e de uma maneira secundária. Continha cláusulas diversas, como a que impedia que o rei impusesse tributos que não fossem aprovados pelo Grande Conselho, ou Curia Real, dos quais os barões faziam parte. A Carta, na verdade, não criou novos direitos para os barões, mas objetivou preservar os existentes a todo o custo, o que pode ser constatado na literalidade de seu conteúdo, pela maior expressão de proibições do que afirmações perante o rei. Os privilégios concedidos pelo feudalismo aos barões, não podiam se perder perante tantas investidas reais (MAUROIS, 1959, p. 125).

É exagerado considerar a Magna Carta como a primeira das declarações de direitos dos homens, pois esta consistiu em uma mera exposição de direitos baroniais. Todavia, é inegável o seu valor como gérmen de toda a história do desenvolvimento das liberdades políticas. Prova disso é que frente a outros territórios vizinhos, como a própria França, onde o absolutismo reinou com toda a força nos séculos XVII e XVIII, a Inglaterra teve o poder real exercido de outra forma, mais adequada à personalidade do povo inglês, os quais entendem a conservação de seus costumes e tradições como parte inseparável de suas vidas. O caminhar dos séculos trouxe um alcance mais abrangente para a Magna Carta, conforme o desenvolvimento dos conceitos que ela estipulava somente para os barões feudais, na época de sua assinatura em Runnymede. A partir da assinatura da Magna Carta o monarca inglês passou a ser limitado por costumes por ele reconhecidos, os quais concederiam equilíbrio para o seu governo frentePage 600 ao poder político dos barões. Examinada por esta perspectiva a Magna Carta representou um marco fundamental na conquista das liberdades políticas.

Vistas estas questões históricas, cumpre neste instante examinar o objeto principal de toda esta narrativa, o Habeas Corpus, o qual encontrou sua inicial formulação neste pacto entre o rei e os barões, na literalidade do capítulo 29: “Que não se tome o corpo de um homem livre; que não seja preso...

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