A Consciência Jurídica Universal como Fonte Material do Direito Internacional

AutorAntônio Augusto Cançado Trindade
Ocupação do AutorJuiz da Corte Internacional de Justiça (Haia)
Páginas99-122
IV
A Consciência Jurídica Universal como Fonte Material do
Direito Internacional1
Sumário:1I. Introdução: Insuficiência das “Fontes” Formais e Relevância da
“Fonte” Material do Direito Internacional. II. Consciência Humana, Recta
Ratio e a Universalidade do Direito Internacional. III. A Fonte Material do
Direito Internacional Mais Além do Positivismo Jurídico Estatal. IV. Evoca-
ção e Afirmação da Consciência Jurídica em Tratados Internacionais. V.
Consciência Jurídica Universal: O Significado Histórico da Cláusula Mar-
tens. VI. Invocação da Consciência Jurídica em Processos Judiciais e na
Jurisprudência Internacional. VII. Invocação e Afirmação da Consciência
Jurídica na Doutrina Jusinternacionalista. VIII. Observações Finais: As Rea-
lizações do Direito Internacional e a Consciência Jurídica Universal.
I. Introdução: Insuficiência das “Fontes” Formais e Relevância da
“Fonte” Material do Direito Internacional
O posicionamento adotado nas últimas décadas por parte da doutrina inter-
nacionalista, de, sob um enfoque essencialmente positivista, se limitar a considerar
apenas as “fontes” formais do direito internacional, privou o tema de um exame
mais aprofundado dos fundamentos jurídicos, e, em última anális e, da própria vali-
dade das normas de direito internacional. Excluiu da análise da formação do direito
internacional o substratum das normas jurídicas: as crenças, os valores, a ética, os
ideais e as aspirações humanas. Não é de se surpreender que tal posicionamento
tornou o estudo do tema um tanto árido, sem qualquer inspiração, circunscrito aos
modos ou procedimentos pelos quais as normas internacionais são formalmente
criadas2. Tal postura reduziu a visão do direito internacional a uma ordem jurídica
1 O presente artigo deriva do capítulo VI da obra do Autor: A.A. Cançado Trindade, “In-
ternational Law for Humank ind: Towards a New Jus Gentium – General Course on Public
International Law – Part I”, 316 Recueil des Cours de l´Académie de La Haye [RCADI] (2005) pp.
177-202. Tradução, do original em ing lês ao português, por Henrique Napoleão Alves, revista
pel o Autor.
2 Michel Virally, por exemplo, afirmou abertamente que o se designou como “fonte”
material não seria de “interesse” dos estudos de direito internacional; M. Viral ly, “Panora-
ma du droit international contemporain – Cour s général de droit international public”, 183
RCADI (1983) p. 167.
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meramente formal. Essa visão reducionista, conducente a resultados insatisfatórios,
perdurou ao longo das últimas décadas, e teve, no meu entendimento, consequên-
cias prejudiciais, entre as quais a perpet uação da perspectiva hermética da concep-
ção positivista, o esvaziamento de uma ordem jurídica internacional, insen sível aos
valores, e sua incapacidade de satisfazer as necessidades sociais.
Ao final dos anos sessenta, J.H.W. Verzijl, por exemplo, após distinguir devida-
mente as fontes formais e material do direito internacional público, ponderou que não
era possível examinar as fontes do direito internacional público sem reconhecer a im-
portância do direito natural para o direito das gentes (droit de s gens), independentemen-
te de o conteúdo do direito natural ter uma existência “objetiva” ou emanar da consciên-
cia humana3. No entanto, e um tanto surpreendente, Verzijl interrompeu essa linha de
raciocínio de forma repentina ao afi rmar que apenas as fontes “formais”, como procedi-
mentos de “criação” adotados com esse fim por um determinado ordenamento jurídico,
deveriam ser consideradas como “fontes” de direito internacional público4.
Anos antes, a mesma postura de reserva mental já tin ha se manifestado na
doutrina jurídica. Ao contrário do que foi afirmado, por exemplo, por Hans Kelsen,
de que não era possível reconciliar a ordem jurídica com a ordem moral5, o meu
entendimento é no sentido de que a experiência humana ao longo do século XX –
marcada por tantos avanços no domínio científico-tecnológico, acompanhados por
atrocidades sem precedentes – demonstra que não é possível conceber uma ordem
jurídica que se abstraia de uma ordem moral. A afirmação de Kelsen foi feita em sua
avaliação sobre um estudo clássico de J.L. Brierly que, como ele, procurou examinar
o fundamento de validade das normas do direito internacional. Brierly chegou a
afirmar, em seu estudo, que a ligação entre direito e moral era muito mais funda-
mental do que a sua distinção, e que o fundamento último de uma obrigação inter-
nacional assenta-se no seu conteúdo ético6; porém, mais adiante, o próprio Brierly
confessou não saber como conciliar a crença individual de agir em conformidade
com o direito com o caráter imperativo desse último7.
3 J. H. W. Verzijl, International Law in Historical Perspective, vol. I, Leyden, Sijthoff, 1968,
pp. 1-3 .
4 Ao se re cusar a levar em conta os princípios que transcendem as norma s do direito
positivo – independentemente de eles serem apreendidos pela doutrina, pel a razão, ou pela
consciência human a, ou formados “espontaneamente” (tal como proposto pela “escola histó-
ric a”; ibid., pp. 7-8) – acabou ele cedendo à visão hermética do positivismo jurídico.
5 H. Kelsen, “The Basi s of Obligation in International Law”, in Estudios de Derecho In-
ternacionalHomenaje al Prof. C. Barcía Trelles, Santiago de Compostela, Univ. Santiago de
Compostela, 1958, p. 110.
6 J.L. Brierly, The Basis of Obligation in International Law, Oxford, Clarendon Press, 1958, p. 65.
7 Cf. ibid., pp. 66-67, e cf. também, pp. 68-80. E, em sua obra The Law of Nations, limitou-s e
ele, de maneira bastante insati sfatória, tout court, a dizer que a resposta a essa questão seria
encontrada fora da ordem jurídica, cabendo à filosofia do di reito fornecê-la. Assim, se reteve no
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