A Formação do Direito Internacional Contemporâneo: Reavaliação Crítica da Teoria Clássica de Suas 'Fontes

AutorAntônio Augusto Cançado Trindade
Ocupação do AutorJuiz da Corte Internacional de Justiça (Haia)
Páginas28-89
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A Formação do Direito Internacional Contemporâneo:
Reavaliação Crítica da Teoria Clássica de suas “Fontes”1
Sumário: I. Introdução. II. Considerações s obre as “Fontes” Formais do Direito
Internacional. III. As “Fontes” Formais Enumeradas no Ar tigo 38 do Estatuto da
CIJ. 1. O Costume Internacional. 2. Os Tratados Internacionais. 3. Os Princípios
Gerais do Direito. 4. Valor da Jurisprudência Internacional (Decisões Judiciais e
Arbitrais). 5. Valor da Doutrina. 6. O Elemento da Equidade. IV. As “Fontes” For-
mais Não Enumeradas no Artigo 38 do Est atuto da CIJ. 1. Os Atos Jurídicos Unila-
terais dos Estados. 2. As Resoluções das O rganizações Internacionais. V. O Proces-
so de Formação do Direito Internacional Contemporâneo: Do Consentimento ao
Consenso. VI. Considerações sobre a Questão da “Fonte” Material do Direito In-
ternacional. VII. O Amplo Alcance da Op inio Juris na Formação do Direito Interna-
cional Contemporâneo. VIII. Conclusões: A Consciência Jurídic a Universal.
I. Introdução1
A questão básica das “fontes” do Direito Internacional continua desafiando os
estudiosos da matéria, e requerendo um tratamento adequado do processo de for-
mação do Direito Internacional contemporâneo. A crescente complexidade deste
processo, somada ao advento de novos atores no cenário internacional, têm contri-
buído para ampliar os modos pelos quais o Direito Internacional hoje se manifesta.
Já a doutrina clássica tendia a ressaltar a disti nção entre as fontes formais do Direito
Internacional, ou seja, os meios pelos quais este se manife sta e suas normas são cria-
das (costume, tratados, princípios gerais do direito, jurisprudência, doutrina, equi-
dade, dentre outras), e sua chamada “fonte” material, a saber, o substratum – met aju-
rídico – de que se originam as primeiras2. Na verdade, a referida “fonte” material
encontra-se inelutavelmente ligada, em última análise, à questão da própria validade
das normas do Direito Internacional.
1 Estudo apresentado em três conferências ministradas pelo Autor, no XXIX Curso de Di-
reito Internacional Organ izado pela Comissão Jurídica Interamericana da Organi zação dos
Estados Americanos (OEA), realizado no Rio de Janeiro, Brasil, em 15-16 de agosto de 2002.
2 Georges Scelle, «Essai sur les sources formelles du droit international», Recueil d’etudes
sur les sources du droit en l’honneur de François Gény, vol. III, Paris, Rec. Sirey, 1934, pp. 400-430;
Max Sorensen, Les sources du Droit intern ational, Copenhague, E. Munksgaard, 1946, pp. 13-14.
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A HUMANIZAÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL
Esta questão, no entanto, – como ponderou com lucidez M. Sorensen em 1946,
– transcende o âmbito do direito positivo3. Como os jusinternacionalistas, em sua
grande maioria, não se mostraram dispostos a adentrar-se nesta linha de reflexão,
tornou-se comum, – mais cômodo, – ao longo dos anos, nos numerosos livros e cur-
sos dedicados à matéria, tomar reiteradamente como ponto de partida para o estudo
da mesma o disposto no artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça (CIJ),
virtualmente idêntico ao mesmo artigo do Estatuto da anterior Corte Permanente de
Justiça Internacional (CPJI)4. O elenco consagrado naquela célebre disposição, no
entanto, se refere tão só às “fontes” formais. O estudo da formação do Direito Inter-
nacional, desse modo, não se exaure – não pode se exaurir – na consideração apenas
do referido elenco das “fontes” formais.
No presente estudo, examinarei, de início, o sentido e alcance das “fontes”
formais do Direito Internacional, – tanto as consagradas no art igo 38 do Estatuto da
CIJ como as que neste não figuram. Em seguida, procederei a uma reavaliação críti-
ca da teoria clássica das “fontes”, para isto considerando o processo de formação do
Direito Internacional contemporâneo (desvendando a passagem do consentimento
ao consenso). Procedendo, enfim, à consideração da “fonte” material, examinarei a
questão do amplo alcance da opinio juris na formação do Direito Internacional con-
temporâneo, e as manifestações da consciência jurídica universal, precisamente como
“fonte” material última do Direito Internacional.
II. Considerações Gerais sobre as “Fontes” Formais do Direito
Internacional
Dispõe o referido artigo 38 do Estatuto da CPJI e da CIJ que, na solução de
controvérsias que lhe forem submetidas, a Corte aplicará as convenções internacio-
nais, o costume internacional e os princípios gerais do direito, acrescidos, como
meios auxiliares para a determinação das regras de direito, das decisões judiciais e
da doutrina; é, enfim, facultado à Corte decidir uma questão ex aequo et bono, se as
partes com isto concordarem. O histórico legislativo desse dispositivo remonta a
1920, quando uma Comissão Consultiva de Juristas foi nomeada pelo Conselho da
Liga das Nações para preparar o projeto para o estabelecimento de uma Corte Per-
manente de Justiça Internacional.
A referida Comissão Consultiva de Juristas teve composição ilustre: Adatci,
Altamira, Clovis Bevilaqua (substituído posteriormente por Raul Fernandes), Barão
Descamps, Hagerup, Albert de La Pradelle, Loder, Lord Phillimore, Ricci-Busatti,
Elihu Root (assistido por J. B. Scott), sendo D. Anzilotti o Secretário-Geral da
Comissão5. A Comissão reuniu-se na Haia de 16 de junho a 24 de julho de 1920. O
3 M. Sorensen, o p. cit. supra n. (2), p. 15.
4 Afora pequena s variações de fraseologia (na frase i ntrodutória) e na numeração de parágra-
fos e subparágrafos: cf. Bin Cheng, o p. cit. infra n. (101), pp. 2 e 21.
5 Cit. in Bin Cheng, op. cit. infra n. (101), p. 6 n. 19.
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ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE
projeto do artigo 38 do Estatuto da CPJI resultou de um projeto originalmente apre-
sentado pelo Barão Descamps (incluindo tratados, costume, princípios gerais do
direito, jurisprudência), que foi objeto de debates entre os membros da referida Co-
missão, nos quais exerceram influência decisiva, além do autor do referido projeto,
o Sr. E. Root e Lord Phillimore6.
O artigo 38 do Estatuto da antiga CPJI, incorporado duas décadas e meia de-
pois ao Estatuto também da sucessora CIJ, passou a atrair a atenção dos jusinterna-
cionalistas, por enumerar “fontes” do Direito Internacional, chegando mesmo a se
tornar alvo de algumas críticas nos anos seguintes à sua adoção7. G. Scelle, por
exemplo, observou em 1934 que a própria concepção do referido artigo 38 mostrava-
-se insuficiente para atender às necessidades sociais que deveriam ser tomadas em
conta pelo Direito Internacional da época8. Há, no entanto, que se ter em mente que
o referido artigo 38 jamais pretendeu se constituir em fórmula peremptória e exaus-
tiva das fontes do Direito Internacional, mas tão somente em guia à atuação judicial
da Corte Internacional da Haia9.
O mencionado artigo 38 do Estatuto da Corte da Haia também se tornou ob-
jeto de controvérsia entre os autores acerca da questão se estabelecia ou não uma
hierarquia de fontes do Direito Internacional Público. A rigor, as dúvidas se aplica-
riam apenas a tratados, costume e princípios gerais do direito, uma vez que o pró-
prio artigo 38 cuidou de caracterizar a jurisprudência e a doutrina como meios auxi-
liares e atribuir fu nção limitada à equidade. Para os que adotam uma fundamentação
jusnaturalista do Direito Internacional, torna-s e menos difícil apreender o relaciona-
mento entre princípios gerais do direito, tratados e costume: nesta ótica, tratados e
costume seriam atuali zações ou positivações dos princípios gerais do direito, adap-
tadas às situações históricas variáveis10. Mas esta é apenas uma das concepções
existentes (cf. infra). O que pode ser tido como ponto pacífico é que as chamadas
«fontes» do Direito Internacional apresentam-se em constante e dinâmica i nteração.
6 As atas dos debates encontram-se reproduzidas in : Cour Permanente de Justice Interna-
tionale/Comité Consultatif de Juristes, Procès-ve rbaux des séances du Comité (16 juin/24 juillet
1920) avec Annexes, La Haye, Éd. Van Langenhuysen Frères, 1920, pp. 247, 270, 293-297, 306-321,
331-339, 344-346, 351, 584, 620 e 729-730. Para um estudo subsequente destes procès-verbaux,
cf. Maarten Bos, «The Recognized Manifestations of International Law – A New Theory of
«Sources» 20 German Yearbook of International Law (1977) pp. 18 e 33-39.
7 Em 1934, G. Scelle, por exemplo, criticou que a formulação do artigo 38 de Estatuto da CPJI
fora muito influenciada por considerações de ordem política, representando um acordo ou
compromis entre as exigências da técn ica jurídica e as possibilidades das relações intergover-
namentais: G. Scel le, op. cit. supra n. (2), p. 411.
8 Ibid., p. 420.
9 Max Soren sen, Les sources..., op. cit. supra n. (2), pp. 28-33.
10 A. Truyol y Serra, Noções Fundamentais de Direito Internacional Público, Coimbra, A. Amado
Ed., 1962, pp. 141-143.
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