Consentimento para atos na saúde à luz da Convenção de Direitos da Pessoa com Deficiência: da discriminação ao empoderamento

AutorGabriel Schulman
Páginas271-297
Consentimento para atos na saúde à luz
da Convenção de Direitos da Pessoa com
Deficiência: da discriminação ao empoderamento
Da estátua de areia
nada restará
depois da maré cheia
(Helena Kolody)
Gabriel Schulman
Sumário: 1. A Constitucionalização do regime das incapacidades
e a aptidão para decidir em saúde. 2. Consentimento e empodera-
mento. 3. A competência para decidir na saúde e os modelos de
deficiência: correlações. Considerações finais. Referências.
1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO REGIME DAS INCAPA-
CIDADES E A APTIDÃO PARA DECIDIR EM SAÚDE
A ratificação da Convenção de direitos da pessoa com deficiên-
cia (CDPD) e sua recepção no direito brasileiro com status consti-
tucional promove profundas transformações e derruba diversas
barreiras. Entre outros aspectos centrais, a própria afirmação da
humanidade. Nessa linha, o importante art. 12, item 1 define que
“Os Estados Partes reafirmam que as pessoas com deficiência têm
o direito de ser reconhecidas em qualquer lugar como pessoas”.
Prima-se por uma perspectiva inclusiva que associa a tutela da di-
ferença, a celebração da diversidade e a busca da acessibilidade
com a consagração da autonomia em diversas projeções.
Essa reafirmação da condição de humano demonstra a íntima
conexão que se estabelece entre o preconceito (consagrado inclu-
sive por etiquetas jurídicas)e a condição de não-pessoa, a qual re-
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percute no plano social sob a forma de discriminações e exclusões
que, com mesma ênfase, fizeram-se presentes na esfera jurídica.
Como já advertiu Agamben, é fundamental a atenção à decisão so-
bre o valor (e o desvalor) da vida humana.1
A Convenção da Pessoa com deficiência define como imperati-
vo garantir que todas as pessoas com deficiência exerçam plena-
mente, sem discriminação direitos humanos e liberdades funda-
mentais. Cumpre enfatizar, dessa maneira, que por longo tempo
prevaleceu um grosseiro equívoco imaginar que se possa usurpar
o direito à participação efetiva no processo de tomada de decisões
em saúde de uma pessoa por apresentar deficiência física ou inte-
lectual; por apresentar sofrimento psíquico2, ou ainda por estar
sob curatela (interditada como preferem alguns designar).
O consentimento livre e esclarecido como direito fundamental
foi reiterado pelo Comitê das Nações Unidas sobre Direito das
Pessoas com deficiência (CteCDPD) em seus informes a diversos
países, especialmente aqueles cujo direito interno violava conven-
ções internacionais. É o caso da legislação peruana que facilitava a
esterilização forçada.3 O direito fundamental ao consentimento na
saúde, inclusive por parte das pessoas com deficiência intelectual,
das consideradas legalmente incapazes, das com sofrimento psíqui-
co ou outras tantas etiquetas que se queira atribuir é consenso no
Comissariado para Direitos Humanos do Conselho da Europa,4 na
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1 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de
Iraci D. Poleti. Belo Horizonte: UFMG, 2007. p.16.
2 Nesta pesquisa não se fará uma diferenciação profunda entre o regime para defi-
ciência intelectual e doença de saúde mental. Dessa maneira, ao se tratar da proteção
da pessoa com incapacidade intelectual, deficiência intelectual, sofrimento psíquico,
se considera que sempre a proteção abrange a todas as situações. Essa maneira de es-
crever de modo algum deve ser interpretada como uma simplificação, porém como
uma perspectiva que coloca em primeiro plano a proteção em detrimento das nomen-
claturas. Considera-se ainda como premissa que as normas protetivas previstas na
Convenção de Direito da Pessoa com deficiência, por seu status constitucional e natu-
reza de direito fundamental devem ser consideradas de modo mais amplo possível.
Para uma rápida consideração sobre a nomenclatura, cf. BELFORT, Claudia. Loucura,
doença ou sofrimento psíquico? O Estado de São Paulo, São Paulo, 16 nov. 2009.
3 BARIFFI, Francisco José. El Régimen jurídico internacional de la capacidad ju-
rídica de las personas con discapacidad. Madrid: Grupo Editorial Cinca, 2014. p.280-
281.
4 CONSELHO DA EUROPA. Comissariado para Direitos Humanos. Who gets to
decide? Right to legal capacity for persons with intellectual and psychosocial disabili-
ties. França: Abril, 2012. p.11 e 16.

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