Sobre o consentimento médico e outras questões conexas

AutorAna Cristina Miguel de Aquino
Páginas80-102

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I Introdução

“Eu juro1, por Apolo, médico, por Esculápio, Higéia e Panacéia, por testemunhas todos os deuses e todas as deusas, cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: (...)Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte.(...)Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozarPage 81 felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça.“ (Hipócrates2)

Esse texto reflete a matriz do pensamento de muitos profissionais da medicina que se valem até os dias de hoje dos ideais paternalistas do juramento de Hipócrates, que parte do princípio de beneficência e estipula que o médico deve basear-se em seus conhecimentos e formação profissional na busca pela cura de uma enfermidade, independentemente da vontade do paciente. Mas a sociedade evoluiu, influenciada por diversas revoluções, expandindo os direitos individuais, inclusive o direito de dispôr sobre o próprio corpo e a autonomia do paciente sendo concretizada pelo direito ao consentimento informado. A emancipação do paciente originou a sobreposição da autonomia de sua vontade sobre o poder da classe médica, que agora só pode intervir após o consentimento livre e informado quanto ao diagnóstico, prognóstico e processo terapêutico ao qual será submetido.

O objetivo do presente artigo consiste em destacar os limites existentes entre o poder paternalista do médico frente ao consentimento informado, o respeito à vida quando a vontade do paciente é oposta à ela e o papel que o médico representa na sociedade enquanto guardião da vida. A não efetuação do consentimento repercute diretamente na responsabilização do médico? E a prática de um ato médico isento de consentimento informado prévio estabelece margem para possíveis indenizações? Eis algumas questões que esta análise objetiva esclarecer, uma vez que aborda tema tão importante para a afirmação do direito à autonomia do ser humano, uma das principais expressões do princípio da dignidade da pessoa humana.

No decorrer do texto verificaremos quais das hipóteses abaixo são tecnicamente adequadas à definição do reflexo do consentimento informado sobre a responsabilidade civil do médico. Além disso, o trabalho pretende alcançar à discussão jurisprudencial que perpassa o tema do consentimento médico. De que forma a jurisprudência tem protagonizado a solução de conflitos envolvendo esses princípios, no caso concreto? É outra vertente que se busca analisar no breve artigo a seguir.

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II Breve panorama histórico e filosófico

Na antiguidade, o exercício da medicina era revestido por um caráter sobrenatural, onde o médico se figurava entre deuses e semideuses por serem os únicos detentores do conhecimento sobre a ciência naquela época. Esta visão sagrada era oriunda da submissão e impotência do paciente diante das enfermidades, que muitas vezes eram interpretadas como conseqüência do pecado.

A ignorância dos enfermos no quesito científico os remetia à uma relação de submissão ao médico. Quanto à incapacidade do médico de curar todas as doenças, a justificativa era atribuída ao infortúnio e principalmente à vontade divina, ou seja, a doença uma vez entendida como forma de sanção impedia o questionamento da capacidade do médico nos casos de insucesso.

A passividade trazia como conseqüência a idéia do paciente como objeto de estudo da medicina, como cobaia de novas técnicas e experiências.

No entanto, as revoluções históricas possibilitaram a ascensão de uma visão mais humanitária do mundo, antropocêntrica em detrimento do pensamento escolástico, teocêntrico, que remetia o homem ao medo, à obscuridade. A partir de então nasce um novo homem, aquele sujeito detentor de direitos, destemido, sedento pela verdade e pelos estudos, e este homem abriu caminho para os avanços tecnológicos, intelectuais e científicos.

As Revoluções do século XVIII disseminaram as idéias dos direitos fundamentais do homem, incutidos na idéia de Dignidade da pessoa humana. A conscientização de seus direitos, inclusive os direitos do consumidor, levou o homem a exigir prestação de contas e uma maior qualidade dos serviços que lhes eram prestados, inclusive no âmbito da medicina. Agora, aquele paciente até então alheio à vontade do médico, passa a indagar a respeito da realidade do seu quadro, reivindicando transparência sobre os procedimentos escolhidos pelo médico em seu tratamento.

Graças a isso, no século XIX se inicia a queda do caráter sobrenatural da medicina, e o questionamento de suas práticas, bem como a conscientização da importância dos bens jurídicos pelos quais o médico se responsabiliza no exercício de seu papel.

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A partir daí, o médico perde seu pleno poder de decisão sobre a vontade do enfermo, principalmente quando foram descobertas inúmeras experiências não autorizadas realizadas em cobaias humanas.

Agora não mais se admitia que o erro médico, a fatalidade, fosse um desígnio divino. A Medicina de fato deixa de ser uma “arte” ou ainda, “magia” e se consolida como uma ciência.

E ainda com todo o avanço intelectual e os questionamentos, para que o paciente tivesse o direito de dispor sobre o próprio corpo reconhecido, foi necessária a intervenção do Poder Judiciário, e em face disso, nasce o princípio do consentimento informado.

Atualmente, o princípio do consentimento informado é tido como a manifestação de respeito e consideração da dignidade da pessoa humana, uma vez que o paciente é sujeito autônomo, capaz e detentor de vontade própria.

III Os princípios que concretizaram a importância do consentimento informado
(i) O princípio da Autonomia

Cabe abordar o princípio da autonomia, para um melhor entendimento do consentimento médico. O Princípio da autonomia surge na antiga Grécia, na qual as Cidades-Estado conquistaram o poder de editar e criar as próprias leis. A autonomia da pessoa humana surge como resultado das grandes revoluções civis, inclusive a francesa, responsável por pregar os ideais do direito humano, que determinavam direitos e garantias fundamentais para o ser humano, os quais o Estado não poderia se negar a proteger e muito menos dispor destes direitos e garantias por considerar determinado indivíduo incapaz de possuí-los.

A autonomia pode ser visualizada como o oposto do paternalismo, medida adotada para se evitar prejuízos para o indivíduo, considerado incapaz de tomar as devidas atitudes para o seu bem, independente de sua carga cultural e intelectual. O consentimento informado, nada mais é do que o reconhecimento da autonomia do paciente, e entra em cenaPage 84 para combater o paternalismo e aceitar o paciente como capaz de decidir o que é melhor para si, ainda que com auxílio técnico a respeito do tratamento que mais lhe parecer ser conveniente.

Entra em voga a polêmica a respeito do posicionamento do médico, se este deve adotar uma atitude paternalista, dispensando a intervenção do paciente em suas decisões, ou ao contrário, se deve admitir a participação do paciente da escolha do melhor procedimento a ser aplicado no corpo do enfermo no decorrer de seu tratamento, ainda que esta decisão ponha em risco a própria integridade física ou saúde do paciente.

A discussão envolve a consideração de que o paciente, em regra, não possui conhecimento técnico suficiente para avaliar a melhor atitude a ser tomada, sendo o médico a figura mais apropriada para decidir o que deve ser feito e dificulta a intenção de se informar previamente o paciente e esclarecer todos os fatores da situação de seu quadro, minuciosamente.

A idéia do Consentimento Informado é justamente tornar o procedimento algo transparente para o paciente, a fim de que o próprio possa tomar alguma decisão consciente a respeito do tratamento médico a ser adotado.

O paciente, ainda que leigo, deve ter o direito de estar a par do que lhe ocorre, bem como das alternativas que lhes são oferecidas, ainda que ao decidir, este possa acarretar a própria morte. Além disso, a própria decisão técnica também é passível de erros e pode também submeter o paciente a conseqüências permanentes.

O respeito à autonomia é o respeito à visão sobre a vida que possui o paciente, fundamentada em crenças, valores morais e educação a qual recorre o indivíduo ao decidir sobre o que fazer com o seu corpo, ainda que seja contrária aos preceitos da sociedade e aos valores médicos. Esse respeito demanda por tolerância com diferentes visões sobre o mundo. O risco do insucesso estará sempre ao lado da autonomia do paciente, o que não invalida sua capacidade de decisão, pois todo e qualquer ser humano deve ser tratado com dignidade, sendo aceita sua opinião, sua vontade, o que pode até mesmo facilitar sua cura.

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(ii) O princípio da Beneficência

O Princípio da autonomia confronta-se diretamente com o princípio da beneficência, que valoriza a busca pelo resultado mais favorável à saúde do paciente, independentemente de sua vontade. Durante muito tempo esse princípio se sobrepôs sem polêmica, ilustrado principalmente pelo juramento de Hipócrates, o qual afirma que o médico deve buscar o melhor para o enfermo, mesmo contra sua vontade. Esta idéia é a mais nítida expressão paternalista, pois ignora o poder do paciente de decidir sobre os...

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