Aos Ministros, tudo? Uma análise da aplicação dos requisitos constitucionais na elaboração de súmulas vinculantes

AutorAdriana Lacombe Coiro
Páginas89-164
Aos Ministros, tudo?
Uma análise da aplicação dos requisitos constitucionais
na elaboração de súmulas vinculantes
ADRIANA LACOMBE COIRO
Introdução
Em 2004, foram criadas no Brasil as súmulas vinculantes. A criação foi parte da
Reforma do Judiciário e se deu após longos debates, com críticas e opositores ao
novo instituto1. Foi dado novo poder ao Supremo Tribunal Federal, poder este
que não foi destituído de condicionamentos, o que  ca claro a partir da redação
do caput do artigo 103 -A e de seu parágrafo primeiro.
De acordo com o artigo, para a aprovação de uma súmula vinculante deve-
-se respeitar quatro requisitos, dispostos constitucionalmente: (i) “reiteradas de-
cisões sobre matéria constitucional” 2; (ii) presença de “controvérsia atual entre
órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública”; (iii) que “acarrete
grave insegurança jurídica” 3 e; (iv) “relevante multiplicação de processos sobre
questão idêntica” 4. São requisitos cumulativos5, sem os quais, de acordo com o
texto constitucional, as súmulas vinculantes não poderiam ser editadas6.
Como o próprio nome diz, são enunciados que, após editados, vinculam
todo o poder judiciário e a administração pública direta e indireta, impactan-
1 Questionando a constitucionalidade das súmulas vinculantes, veja -se Daniel Barbosa (BARBOSA,
2005, p 465) e Lenio Streck (STRECK, 2005)
2 Pollyana Guimarães a rma que “a expressão reiteradas decisões deve ser entendida no sentido de haver
jurisprudência já paci cada no tribunal.” (GUIMARÃES, 2007). No mesmo sentido: José Carlos de
Moraes Salles (SALLES, 2007, p. 14), José Carlos Buzanello (BUZANELLO, 2007 p. 28) e Manoel
Lauro Volkmer de Castilho (CASTILHO, 2007. p. 117).
3 Sobre o tema, a rma Buzanello que a “gravidade da insegurança jurídica, apesar de certa vagueza, é cons-
tatada quando os jurisdicionados não conseguem identi car uma conduta clara e uniforme dos órgãos
judicantes.” (BUZANELLO, 2007. p. 43)
4 De acordo com Buzanello, este último requisito “pode ser facilmente constatado pelo elevado número de
processos que abrangem a mesma tese jurídica, mas que oferecem respostas diferenciadas, em clara ofensa
ao princípio constitucional da igualdade substancial das partes” (BUZANELLO, 2007, p.28 -29).
5 Neste sentido Guilherme Moraes a rma que “A e cácia vinculante dos enunciados da súmula da ju-
risprudência predominante é submetida a quatro pressupostos materiais.” (MORAES, 2007 p. 113)
No mesmo sentido, André Tavares (TAVARES, 2007, p. 33), Marcelo Lamy (LAMY, 2009, p. 308),
Gustavo Nogueira (NOGUEIRA, 2009 p.235) e Nelson Oscar de Souza (SOUZA, 2005, p. 188).
6 Não foi, na pesquisa para este trabalho, encontrado nenhum posicionamento doutrinário em sentido contrário.
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do todas as futuras decisões sobre o tema, em qualquer grau de jurisdição. É
por isso que, conforme Oscar Vilhena, “com a adoção de da súmula vinculan-
te, completou -se um ciclo de concentração de poderes nas mãos do Supremo”
(VIEIRA, 2008. p. 445).
Trata -se de decisões em que o STF decide como decidir. Como tais, de-
vem ser tomadas com alto grau de cautela, com muito cuidado e represen-
tando posicionamento  rmado da Corte7, pois uma vez editadas, as súmulas
terão signi cativo impacto em todo o ordenamento jurídico. Neste sentido, são
comparáveis ao que Sunstein e Ullmann -Margalit classi cam como decisões de
segunda ordem [second order decisions], decisões que puxam para agora a res-
ponsabilidade de determinar como se decidirá no futuro. Em outras palavras:
ao decidir adotar uma súmula agora, o Supremo se exime de decidir uma série
de casos idênticos no futuro, pois estes casos terão sua solução com base no
enunciado vinculante, sem que se passe novamente por um processo abrangen-
te de tomada de decisão. A decisão pela súmula, assim, faz com que a Corte não
tenha que de fato decidir novamente os casos que a súmula pretende regular.
Por isso, é necessário que se invista especial cuidado, atenção e tempo na
discussão destes enunciados. Trata -se de uma espécie de investimento: gasta-
-se tempo agora, para discutir a súmula, para economizar tempo no futuro,
quando a súmula for aplicada. Os requisitos constitucionais enquadram -se bem
neste cenário: são uma exigência do constituinte para que se tenha cuidado no
momento de tomar essas decisões, dada sua importância. Não podem ser, as-
sim, decisões sumárias ou padronizadas.
Com estes objetivos, visando por exemplo diminuir o número de processos
que chegam ao Supremo, foram aprovadas em 2007 três súmulas vinculantes.
Em 2008, foram dez. Em 2009, catorze. Vê -se, assim, que embora o número
tenha diminuído em 2010 (com apenas três súmulas vinculantes editadas) e
2011 (com cinco), o STF vem aumentando progressivamente o uso de sua
competência para a edição destas súmulas, com consequente aumento do im-
pacto das mesmas.
Tal impacto vem muitas vezes sendo acompanhado de elogios, descreven-
do as súmulas como uma inovação de sucesso. Recente editorial do jornal Es-
tado de São Paulo, por exemplo, a rmou que as súmulas vinculantes “tiveram
tanto sucesso que estão sendo copiadas”, e que contribuíram para “fortalecer a
segurança do direito e a certeza jurídica” (SÚMULAS..., 2012).
Vem -se discutindo também a elaboração desses enunciados, mas nem sem-
pre de forma que corresponda exatamente à realidade. Segundo o Ministro
7 Neste sentido, ver André Ramos Tavares (TAVARES, 2007. p.17)
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Cezar Peluso em recente entrevista, as súmulas não são algo “oracular”, não
surgem a partir do nada. São criadas a partir de “milhões de pequenas decisões,
trabalho de re exão de milhares de juízes que decidem com uma visão comum.
E então o STF diz: “Diante de tanto consenso, é hora de  xar uma posição”. E
está criada a súmula.” (COSTA, 2012).
A a rmativa está em pleno acordo com o dispositivo constitucional. Mas
ela está de acordo com a prática? Ou melhor — será que a prática está de acordo
com os dispositivos constitucionais? Como vem se dando este procedimento?
Como são analisados os requisitos constitucionais? Há uma preocupação dos
Ministros em veri-los? Quais os critérios para que uma súmula vinculante
seja aprovada, e por qual procedimento ela passará até sua aprovação?
Perguntado, na mesma entrevista, sobre quem poderia propor súmulas
vinculantes, o Ministro Peluso a rmou quequalquer pessoa pode propor”, e
que não houve no STF “nenhuma proposta formal de súmulas vinculantes por
parte de entidades ou organizações. Existem sugestões informais de advogados,
mas formalmente nada.”
Como será discutido adiante neste trabalho, a situação não é tão simples
como sugere o Ministro Peluso. Em verdade, já houve mais de trinta propostas
de súmulas vinculantes apresentadas por associações, entidades e advogados.
A maior parte delas não pode prosseguir pois, ao contrário do a rmado pelo
Ministro, seus proponentes não possuíam legitimidade, já que apenas podem
propor súmulas aqueles presentes no art. 3o da Lei 11. 417, de 2006.
-se, assim, que apesar da importância do tema, há hoje signi cativo
desconhecimento a respeito da forma como as Súmulas Vinculantes vem sen-
do propostas, analisadas e aprovadas. Como vem se dando a discussão sobre
esses enunciados? Quais os momentos em que os requisitos constitucionais são
(ou deveriam ser) avaliados? O Supremo tem feito esta análise? Em caso nega-
tivo, quais as consequências disso? Há alguma diferença entre as propostas do
próprio STF e as propostas externas? Responder a estas questões é o objetivo
deste trabalho.
Para isso, dividiu -se o trabalho em cinco partes: primeiro, é feita uma des-
crição dos procedimentos adotados entre 2004 e 2012 para a edição de súmulas
vinculantes. Em seguida, analisa -se a forma como os requisitos constitucionais
foram debatidos em cada um dos momentos em que as propostas de súmulas
passaram pelo STF, como a petição inicial, a manifestação da Comissão de Ju-
risprudência e o debate no plenário8.
8 Para tanto, na primeira fase, em que havia somente debate no plenário, foram analisados os debates das
treze súmulas vinculantes aprovadas no período. Já na segunda fase, em que havia um procedimento com

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