A Mutação Constitucional da Inafiançabilidade

AutorClaudio Watrin de Araujo
CargoBacharel em Ciências Jurídicas e Sociais (PUC/SP)
Páginas6-16

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1. A dignidade constitucional da inafiançabilidade

A inafíançabilidade tem sido indubitavelmente um dos institutos mais ignorados do direito brasileiro. Os doutrinadores do direito processual penal já há muito tempo a tratam com um certo desdém, e os constitucionalistas tampouco a veem com grande estima, sendo que alguns dos manuais mais completos não lhe dispensam qualquer atenção.

Tamanho descaso para com um instituto incluído no rol de direitos fundamentais da Constituição da República é irredimível, mormente se levada em consideração a grande discrepância jurisprudencial quanto à sua correta aplicação. É imperativo recordar que o Poder Constituinte Originário relacionou como inafiançáveis nada menos do que seis diferentes categorias de delitos - racismo, tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, crimes hediondos, terrorismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático - o que por si só já justificaria um estudo mais focado sobre o tema.

Outrossim, trata-se de um instituto assaz relevante dentro do sistema constitucional de imunidade s parlamentares, na medida em que o art. 53, § 2o, da lei maior somente autoriza a prisão de deputados e senadores na existência de situação de flagrância de crimes para os quais a fiança seja inacessível. Como as leis orgânicas da Magistratura e do Ministério Público também contam com disposições semelhantes, a inafíançabilidade repercute igualmente sobre as prerrogativas dos integrantes destas carreiras.

Além disso, convém registrar que as variadas interpretações que os tribunais têm conferido à matéria afetam sobejamente direitos e garantias fundamentais, a exemplo

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da liberdade dos cidadãos, da res-tritividade das prisões cautelares e da obrigação de motivação das decisões judiciais. Não se pode deixar de tomar em consideração o fato de que muitos réus permaneciam detidos por período prolongado unicamente porque constara do auto de prisão em flagrante menção a delito inafiançável, o que levava alguns juízes a manter a custódia de forma quase maquinal.

Finalmente, vê-se que a própria observância do devido processo legal pode exibir íntima relação com a interdição da caução, tendo em vista que o Código de Processo Penal distingue o rito procedimental para delitos praticados por servidor público, a depender da afiançabili-dade ou não das infrações imputadas.

O tema demonstra ao mesmo tempo grande atualidade diante do novo fôlego dado à fiança criminal com a recente sanção da Lei 12.403 de 2011, evento que demanda novas reflexões sobre esta medida cautelar e sobre as situações de sua inacessibilidade. Para melhor compreender a inserção da questão dentro do todo maior que é o processo penal constitucional, faz-se necessária uma breve reconstrução temporal da inafiançabilidade, expondo-a inicialmente nos moldes em que ela foi erigida pelo legislador de 1941, para em seguida acompanhar a contradição inserida na sistemática codificada, referendada pela Constituição de 1988, com a supervalorização da liberdade provisória sem fiança.

Feito este introito histórico, não sem antes dar uma rápida mirada nas posições adotadas pelo Supremo Tribunal Federal sobre o tópico, se demonstrará como o instituto ora em análise passou por um processo de mutação constitucional, levado a cabo com as modificações promovidas pela Lei 12.403/11. Com isto, a inafiançabilidade, enfim, pode se desvencilhar dos significados que antes lhe eram conferidos para revestir-se de um novo perfil, mais adequado a um processo penal equilibrado e preservador dos valores constitucionais em sua inteireza.

2. A inafiançabilidade no Código de Processo Penal de 1941

O Código de Processo Penal de 1941 nasceu comprometido com as ideologias totalitárias que grassavam pelos Estados na primeira metade do Século XX. Para realizar esta constatação, é suficiente observar que ele foi editado sob a égide da ditadura de Getúlio Vargas, tendo como principal referencial teórico a legislação processual penal da Itália fascista. Suas bases são decididamente autoritárias, nutridas por um espírito inquisitivo, atributos facilmente perceptíveis na disciplina original do subsistema das medidas cautelares, que se reportava à liberdade como provisória quando, em um Estado Democrático de Direito, na realidade provisória deveria ser a prisão.

É inegável que o Código, quando de sua promulgação, comungava com uma certa presunção de culpa do acusado. A simples assunção do status de réu bastava para que seu encarceramento fosse reputado necessário, pois desta condição se inferia uma nocividade ao convívio social que deveria ser neutralizada pela ação do Estado. Prova maior disso era a redação primitiva do art. 312 do Código, que dispunha sobre a decretação obrigatória de prisão preventiva para todos aqueles que respondessem por crimes sancionados com tempo de reclusão igual ou superior a dez anos. Foi um dispositivo que inspirou críticas mesmo à época de sua confecção1, já que subtraía do juiz a capacidade de avaliar em cada caso se o incriminado de fato oferecia ou não risco à sociedade.

O mesmo contexto que consagrou a prisão preventiva obrigatória fez brotar a questão da inafiançabilidade. É de se lembrar que, a princípio, entendia-se que a liberdade provisória, com ou sem fiança, era apenas sucedânea da prisão em flagrante, ou seja, era medida cautelar (e a fiança uma contra-cautela, a depender da doutrina consultada) admitida em regra quando o suspeito era surpreendido durante ou logo após o ato delinquente. E a caução, naqueles tempos, figurava no cerne da estrutura da liberdade provisória, o que implicava dizer que os tipos morfológicos desta eram formatados de acordo com a exigência, dispensa ou negação da fiança.

Destarte, a liberdade provisória assumia diversas feições, estabelecidas gradativamente conforme a magnitude da infração. Em um primeiro degrau da escala, o réu podia livrar-se solto, "independentemente de fiança", nos dizeres da antiga redação do art. 321 do Código de Processo Penal, caso respondesse por prática de delitos não punidos com privação da liberdade, ou com penas máximas não superiores a três meses. Não havia maior preocupação das autoridades em to-

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mar do acusado o compromisso de comparecimento nos subsequentes atos do inquérito policial e da instrução criminal, pois a ação delituosa se afigurava de uma lesividade tão baixa que o Estado não manifestava maior interesse na ativida-de repressiva2

Em um degrau seguinte, a liberdade provisória era concedida nos termos do art. 310 do Código, mediante termo de comparecimento aos atos do processo. Essa forma de obter a liberdade excepcionalmente prescindia de fiança3, justificando-se pela aparente presença de uma causa excludente de antijuridicidade. A conduta, portanto, não encerrava em si qualquer danosidade social, o que tornava descabida a reclamação de quaisquer compromissos mais gravosos ao réu4

Logo em seguida, achavam-se os delitos afiançáveis, nos quais a liberdade provisória só se franqueava mediante a prestação de garantia real, tendo esta o duplo propósito de assegurar o pagamento das eventuais custas do processo e de substituir a prisão, vinculando o acusado àpersecutio criminis. E, por fim, já no último estágio da linha graduada, estavam os delitos inafiançá-veis, apenados com reclusão, para os quais não poderia o réu obter nenhum tipo de liberdade provisória5, o que se traduzia na manutenção da prisão em flagrante até o final do processo. A inafiançabilidade era, portanto, uma forma de manter no cárcere todos os acusados do cometimento de crimes graves, com lastro na simples suposição de que sua liberdade afetaria negativamente a ordem social.

Semelhante lógica reaparecia em outras hipóteses de proibição da fiança, que do mesmo modo supunham que certas categorias de pessoas eram inerentemente ameaçadoras à harmonia da socie-dade. Era o caso de vadios e mendigos, que, no entender do legislador de 1941, violavam um dever social de trabalhar, entregando-se à ociosidade de maneira tal que não poderia haver a certeza de que eles não fugiriam6 - um verdadeiro "resquício autoritário das Ordenações Filipinas que mandavam prender aquele que não vivia com o senhor ou com amo"7. O juízo de periculosidade quanto aos ociosos era tão presente que, mesmo com a caracterização formal da vadiagem como contravenção, dispensava-se sentença condenatória para comprová-la, podendo ela ser evidenciada nos autos de outras maneiras. Da mesma sorte, proibia-se a prestação de fiança aos que já tivessem contra si condenação penal. A legislação neste ponto era tão severa que sequer aludia à reincidência, contentando-se com a existência de pronunciamento judicial desfa-vorável anterior8

3. Uma presunção de periculosidade mais forte que a presunção de inocência

A necessidade de se conservar na cadeia quem ainda não fora declarado culpado pelas autoridades competentes tem seus alicerces fincados na prisão para salvaguarda da ordem pública. A inafiançabilidade, entendida como óbice à restituição da liberdade a indivíduos supostamente prejudiciais ao convívio harmônico da sociedade, existia de modo análogo à prisão preventiva obrigatória, porém com uma diferença substancial. É que ela não se limitava às infrações punidas de modo particularmente rigoroso, como exigia a redação original do art. 312 do Código, o que a fazia alcançar um...

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