Constitucionalismo e interpretação: um certo olhar histórico

AutorJosé Luiz Quadros de Magalhães
CargoMestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG; Professor de graduação, especialização, mestrado e doutorado da PUC-Minas, UFMG e UNIPAC; Diretor do CEEDE-MG e integrante do NJUP-OPUR
Páginas81-98

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Introdução

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Neste texto procuramos desenvolver algumas reflexões sobre a construção histórica do Direito e como as relações sociais produzem complexidades que são depois traduzidas e sistematizadas pelas Ciências sociais e se tornam teorias, ou em outras palavras, sistematizações simplificadoras de uma realidade complexa interpretada dentro de contextos que são dinâmicos, e, portanto, em permanente mutação.

As teorias enquanto simplificações coerentes sistematizadas do real observado, constroem códigos próprios, que passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta fundamental para a legitimação de poderes excludentes.

Simplificando e procurando simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico, organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos “senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.

Ou: muitas pessoas em muitos momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam inventando.

1. O nascimento do constitucionalismo moderno

O constitucionalismo moderno se afirmou com as revoluções burguesas na Inglaterra em 1688; nos Estados Unidos, em 1776, e na França em 1789. Podemos, entretanto, encontrar o embrião desse constitucionalismo já na Magna Carta de 1215. Não que a Magna Carta seja a primeira Constituição moderna, mas nela já estão presentes os elementos essenciais deste moderno constitucionalismo como limitação do poder do Estado e a declaração dos Direitos fundamentais da pessoa humana, o que a tornou uma referencia histórica para alguns pesquisadores.

Podemos dizer que, desde o inicio do processo de afirmação do constitucionalismo moderno no século XVIII até os dias de hoje, toda e qualquer Constituição do mundo, seja qual for o seu tipo, liberal, social ou socialista, contém sempre como conteúdo de suas normas estes dois elementos: normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competências e, portanto, limitação do poder do Estado e normas que declaram e posteriormente protegem e garantem os direitos fundamentais da pessoa humana. O que muda de Constituição para Constituição é a forma de tratamento constitucional oferecida a este conteúdo, ou seja, o grau de limitação ao poder do Estado, a forma como o poder do Estado estáPage 83 organizado e os meios existentes de participação popular e de respeito à liberdade de imprensa, de consciência e de expressão, o respeito às minorias e a diversidade cultural e étnica (regime e sistema político), a forma de distribuição de competência e de organização do território do Estado (forma de Estado), a relação entre os poderes do Estado (sistema de governo) e os direitos fundamentais declarados e garantidos pela Constituição (tipo de Estado).

Outro aspecto do constitucionalismo moderno diz respeito à sua essência. O nascimento desse constitucionalismo coincide com o nascimento do Estado liberal e a adoção do modelo econômico liberal. Portanto, a essência desse constitucionalismo está na construção do individualismo e de uma liberdade individual, construída sobre dois fundamentos básicos: a omissão estatal e a propriedade privada.

A idéia de liberdade no Estado liberal, inicialmente, está vinculada à idéia de propriedade privada e ao afastamento do Estado da esfera privada protegendo-se as decisões individuais. Em outras palavras, há liberdade à medida que não há a intervenção do Estado na esfera privada e, em segundo lugar, podemos dizer, segundo o paradigma liberal, que os homens eram livres, pois eram proprietários (na primeira fase do liberalismo, as mulheres não tinham direitos e a democracia majoritária não existia). Esses dois aspectos são fundamentais para a compreensão do conceito de liberdade para o pensamento liberal do século XVII e XVIII.

Convém ressaltar a importância da inserção histórica desse pensamento para a sua adequada compreensão. Em primeiro lugar, é importante lembrar contra qual Estado se insurgem os liberais. Não se pode dizer que os liberais são contrários ao Estado social ou socialista ou qualquer outra formulação histórica posterior, justamente pelo fato de que o Estado que conheciam e contra o qual lutavam era o Estado absoluto. Portanto, a primeira constatação importante é de que os liberais se insurgem contra o Estado absoluto. Quando esses pensadores visualizam o Estado como o inimigo da liberdade, têm como referencia o Estado absoluto, que eliminou diversas liberdades para grande parte da população, e transformou os direitos individuais em direitos de poucos privilegiados. Essa compreensão histórica da teoria liberal nos ajuda a entender por que os liberais afirmam os direitos individuais como direitos negativos, construídos contra o Estado, conquistados em face do Estado.

A partir do constitucionalismo liberal, o cidadão pode afirmar que é livre para expressar o seu pensamento, uma vez que o Estado não censura sua palavra; o cidadão é livre para se locomover, uma vez que o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é livre, uma vez que o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma vez que o Estado não intervém na economia. Lembramos que o Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto.

Um aspecto fundamental para a correta compreensão do constitucionalismo liberal e de qualquer idéia ou teoria é a necessidade de inserção desta no contexto histórico em que ela surge. O pesquisador, o leitor interessado em compreender o pensamento de determinado autor deve conhecer o autor, sua historia e para qual realidade esse autor escreveu ou escreve. Isso evitará muitos erros de compreensão comuns e recorrentes na análise e compreensão de textos históricos. Não se pode compreender o pensamento de Hobbes sem conhecer sua história e o momentoPage 84 histórico que inspirou seu pensamento. Isso vale para qualquer outro pensador, e as grandes incompreensões das teorias decorrem justamente da falta de conhecimento do contexto histórico no qual elas foram pensadas e construídas, e mais, por quem essas teorias foram pensadas. Não se pode, por exemplo, ler Nietsche sem conhecer sua história; o risco que se corre é compreendê-lo pelo avesso ou, na verdade, não compreendê-lo. Portanto, para entender a defesa que os liberais fazem da propriedade privada, a confusão que fazem entre economia livre e omissão estatal, desregulamentação e propriedade privada dos meios de produção, é importante compreender o contexto histórico e a idéia de Estado que esses liberais tinham no momento da construção de suas teorias. Ao estudarmos a história da realidade econômica (e não do pensamento econômico) desde então, perceberemos, com clareza, que esses fatores só trouxeram opressão e exclusão, portanto, falta de liberdade para grande parte dos cidadãos.

A defesa do Estado forte defendido por Hobbes, portanto, se dá em uma realidade de caos decorrente da fragmentação de poder não coordenada, que trouxe constantes guerras e destruição. O Estado absoluto surge com a necessidade de se colocar ordem no caos, surge da necessidade de segurança, e daí decorre a construção de uma única vontade estatal encarnada no soberano e no conceito antigo de soberania una, indivisível, imprescritível e inalienável, já estudado no volume 2 do nosso Curso de Direito Constitucional. Do poder permanentemente negociado, da existência de diversos espaços quase soberanos, da negociação de fidelidade dos exércitos dos senhores feudais, característica final do feudalismo, surge o Estado absoluto, com um único foco de poder, uma única vontade soberana e um único exército. Isso é garantia de segurança. O Estado moderno, na sua versão absolutista, surge da afirmação do poder do rei perante os impérios e a igreja (soberania externa) e perante os senhores feudais (nobres) que fragmentavam o poder do Estado, cada um possuindo seu próprio exército e poder quase soberano sobre o seu feudo. As vitórias dos reis sobre os impérios e a Igreja, de um lado, e sobre os senhores feudais, de outro lado, são a base para o surgimento do Estado moderno, que é um Estado territorial, nacional, centralizador de todos os poderes e soberano em duas dimensões, a externa e a interna.1

O Estado nacional é uma construção histórica complexa, realizada com a força dessa única vontade e desse único exército. A criação dos Estados nacionais como Espanha e França é um exercício de imposição de um valor comum, uma história comum, um idioma comum, uma religião comum, capaz de criar um elo entre os habitantes desse Estado que os faça sentirem-se parte da vontade nacional, parte do Estado nacional. O sentimento de pertinência ao Estado nacional é elemento fundamental para sua formação e...

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